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Quem produz o quê? A compra obrigatória da agricultura familiar e a merenda sem agrotóxicos

Série de reportagens A Hora da Merenda esmiúça a importância do arroz com feijão na escola, o agravamento da fome em meio à pandemia e o congelamento do PNAE

Esta é a quarta reportagem da série A Hora da Merenda, que trata sobre a alimentação escolar

Esta é a quarta reportagem da série A Hora da Merenda, que trata sobre a alimentação escolar

Naice Dias | Itatiaia

Quarenta quilômetros percorridos em uma estrada de terra onde são raros os carros e predominantes as motocicletas levam do centro de Itacarambi – município a 9 horas de Belo Horizonte e às margens do rio São Francisco no Norte de Minas Gerais – à casa de Jovelina e Laurindo Dias, 72 e 75 anos, na aldeia Barreiro, que integra a Terra Indígena Xakriabá. Separada do imóvel por um gradil que impede a passagem de porcos e galinhas está uma grande área de plantação. Ali, são cultivadas hortaliças, beterraba e cenoura e feito o plantio de feijão. A lavoura é abastecida com um sistema de irrigação improvisado que dá indícios da oferta limitada de água no território. Dela provém a renda da família, uma entre as que fornecem os alimentos colhidos às mais de 30 escolas do território – adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

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A política pública de oferta de merenda escolar é um dos projetos assistenciais mais antigos do Brasil. Há 12 anos, ela é regulamentada pela lei 11.947, que entre suas disposições prevê que Estados e municípios são obrigados a usar pelo menos 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) na aquisição de alimentos advindos da agricultura familiar.

A legislação determina ainda que devem ser priorizados os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e os grupos quilombolas. O Coletivo de Agricultores e Agricultoras Xakriabá a que estão filiados Jovelina, Laurindo e outros 29 lavradores do território usufrui diretamente do PNAE. A obrigatoriedade da compra e a relação estabelecida com as escolas indígenas do território garante a eles a certeza da venda de seus produtos, e portanto, uma renda fixa durante todo o período letivo. Não apenas.

Foi graças à compra dos alimentos pelas escolas que os agricultores da região puderam investir nas plantações no território, que sofre com a oferta limitada de água, como detalha Nicolau Gonçalves Alkimin, 51, presidente da associação.

“A obrigatoriedade da compra dos agricultores ajudou a abrir portas e nós começamos a emitir nota fiscal. Antes, nós tínhamos agricultores que não conseguiam repassar os alimentos para a escola justamente por conta da falta da nota fiscal. Nós nos organizamos em um coletivo e com a certeza do dinheiro que viria da escola pedimos empréstimos nos bancos para investir no território e fortalecer a agricultura familiar”, cita. “Como falta água, nós vivemos com poços artesianos. Com os investimentos, os agricultores puderam comprar motores, canos, tudo para começar a molhar a terra para plantar”.

Terra Indígena Xakriabá. Demarcado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1979, o território abriga cerca de 12 mil pessoas em 37 aldeias e pertence à cidade mineira com o menor PIB per capita, São João das Missões, e é fronteiriço a Itacarambi. Diante da carência de empregos formais no espaço urbano e no próprio território, a agricultura é um entre os limitados meios de subsistência da população indígena da região, que lida com obstáculos impostos pela seca e pela baixa oferta de água. O acesso ao recurso não é universal, e há trechos do território que recebem água apenas através de caminhões-pipa. A aquisição de alimentos diretamente com produtores rurais de pequeno porte é também uma estratégia para o dinheiro circular na Terra Indígena Xakriabá.

Hora do almoço

O sinal não chega a tocar quando uma dezena de crianças corre das tendas de madeira improvisadas pela Escola Estadual Indígena Xukurank, em reconstrução após um incêndio que a destruiu no ano passado, e se acomoda em bancos de madeira no refeitório. O almoço com arroz, feijão e farinha é servido aos alunos em pratos metálicos. Dedinhos percorrem o balde para escolher entre garfos e colheres com cabos coloridos. “Pode repetir?”, pergunta um aluno à cantineira antes mesmo de almoçar. Da hortaliça servida no almoço nas escolas indígenas às frutas do lanche e ao tempero de alho com coentro usado para preparo das refeições, praticamente todos os alimentos recebidos nas instituições de educação Xakriabá da região são provenientes da agricultura familiar.

As exceções são grãos e cereais, como o arroz, que não são cultivados no território, como detalha a diretora Maria Aparecida Barros, à frente da Escola Estadual Indígena Xukurank. “Nós usamos até mais que 30% dos recursos para comprar os alimentos da agricultura familiar. São alimentos que vêm dos nossos próprios agricultores, das famílias dos alunos, e que não têm agrotóxicos. Além de fortalecer a agricultura, daqui nós mostramos para os nossos alunos como é eficaz valorizar o que sai da nossa própria terra”, esclarece. Instalada na aldeia Barreiro Preto, a escola funciona há duas décadas e atende a mais de duzentos alunos divididos em três turnos.

Estratégia de enfrentamento à pobreza no território indígena, a obrigatoriedade da compra de alimentos da agricultura familiar também é um meio de garantir a qualidade no fornecimento da merenda escolar, segundo defende Luana Caroline dos Santos, do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais. “Quando o PNAE determina que 30% dos recursos têm que ser usados na compra de produtos do pequeno agricultor, ele contribui tanto para o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades, quanto para a saúde das crianças”, pontua. “Isto porque ao invés de comprar de uma grande empresa, o pequeno produtor é privilegiado, ou seja, você dá suporte para uma série de famílias. E em relação aos alunos, não adianta a criança receber frutas e hortaliças se elas estiverem cheias de agrotóxicos. A agricultura familiar garante essa alimentação saudável”, conclui.

Interferências. Ainda que seja destacada a importância da aquisição de alimentos de pequenos agricultores para fornecimento da merenda escolar, a obrigatoriedade dos 30% é alvo de disputas políticas no Congresso Nacional. Sondagem feita pela Itatiaia entre 2018 e dezembro de 2021 encontrou 37 projetos de lei e afins que pretendem promover mudanças no Programa Nacional de Alimentação Escolar.

No grupo estão desde projetos que querem tornar obrigatório o fornecimento de carne suína nas refeições preparadas nas escolas públicas àqueles que afetam a compra direta com a agricultura familiar, como a Indicação 931, de 2019, feita na Câmara dos Deputados. A proposta sugere a “simplificação das regras contidas no PNAE, de forma a suprimir a indicação dos assentamentos de reforma agrária, das comunidades tradicionais indígenas e das comunidades quilombolas, entre os grupos de projetos prioritários”.

À contramão, aparece o PL 10.508, de 2018, que prevê uma bonificação para Estados e municípios que usarem mais de 30% dos recursos na aquisição de gêneros alimentícios destes grupos, e também o PL 10.198, do mesmo ano, que pretende ampliar o percentual mínimo dos recursos a serem usados para compra direta da agricultura familiar – de 30% para 50%. Nenhuma mudança aconteceu no PNAE até então.

Em meio à pandemia…

Integrada à rede da Secretaria de Estado de Educação (SEE), a Escola Indígena Xukurank cancelou as aulas presenciais e a diretora Maria Aparecida foi obrigada a fechá-la sem previsão de reabri-la quando surgiram os primeiros casos de coronavírus em Minas Gerais. A determinação do Estado que forçou a interrupção das atividades nos espaços dos colégios públicos perdurou por um ano e três meses, período cronometrado a partir daquele março de 2020. À época, a SEE orientou que as escolas usassem os recursos do PNAE para confecção de kits com os alimentos originalmente destinados à merenda escolar.

No território, a entrega de verduras, hortaliças, frutas e itens não-perecíveis da cesta básica durante o período mais crítico da pandemia de Covid-19, que se estendeu até dezembro passado, garantiu o sustento de famílias que mantinham os filhos matriculados na rede pública – especialmente as que, na Terra Indígena, são desprovidas de renda fixa e dependem de auxílios governamentais para o sustento.

“Aqui no território nós calculamos que 90% da população não tem acesso à água, só para beber. São pessoas que dependem, por exemplo, de auxílios, do artesanato ou de sair daqui para cortar cana e colher laranja ou café no Sul de Minas e em São Paulo”, pontua Nicolau. “Então, a distribuição da merenda ajudou muito. Até porque não era comida só para a criança, mas também para os pais e os irmãos”, cita. As escolas da Terra Indígena Xakriabá não suspenderam a aquisição de alimentos dos agricultores durante a pandemia, e famílias com alunos matriculados nestas instituições receberam cestas a cada sete ou quinze dias.

Por outro lado, a certeza da alimentação saudável e balanceada para crianças e adolescentes inscritos na rede pública não foi realidade em muitas regiões do país em meio ao surto de coronavírus. Uma investigação conduzida pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) em parceria com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) coletou relatos de 168 grupos de agricultores familiares e pescadores artesanais fornecedores do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

O documento indicou que 44% deles não venderam seus produtos para as escolas em 2020. A capital mineira aparece entre os municípios que suspenderam a aquisição de alimentos perecíveis da agricultura familiar durante a pandemia de Covid-19. À época, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) optou pela entrega de cestas básicas adquiridas junto às redes de supermercado da cidade. Em nota à reportagem da Itatiaia, a administração do município declarou que a opção feita foi uma medida de prevenção ao contágio.

[Esta é a quarta e última reportagem da série Hora da Merenda, que esmiúça a importância do arroz com feijão na escola, o agravamento da fome em meio à pandemia e o congelamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar. O conteúdo especial está dividido em quatro reportagens publicadas aos domingos entre 15 de maio e 5 de junho. A série da Rádio Itatiaia foi financiada com recursos do 3º Edital de Jornalismo de Educação Jeduca | Itaú Social].

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