Faxineira e mãe de duas crianças e dois adolescentes com idades entre 8 e 16 anos, Júnia Cássia Gomes, 33, se percebeu desempregada e com os filhos longe das aulas e sem acesso direto à merenda quando as escolas públicas fecharam as portas e foi decretado estado de emergência pela pandemia de coronavírus. Era março de 2020. Inicialmente, a paralisação duraria quatro dias, mas acabou se prolongando por um ano e três meses. Entre o decreto de calamidade em saúde e o retorno integral das aulas presenciais, dois anos se passaram e os impactos do não-fornecimento direto da alimentação escolar às crianças e adolescentes matriculados na rede pública ainda não podem ser dimensionados.
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No momento em que as escolas precisaram ser trancadas para frear a disseminação dos casos de Covid-19, as secretarias municipais e estaduais de educação do país já contavam em seus caixas com parte dos valores repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para compra dos alimentos servidos na hora da merenda. A lei do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) prevê que estados, municípios e instituições federais recebam os recursos em parcelas mensais, pagas de fevereiro a novembro, para suprir as demandas alimentares dos alunos nos 200 dias letivos. A título de exemplo, a Secretaria de Estado de Educação (SEE) de Minas Gerais recebeu cerca de R$ 161 milhões do governo federal destinados à alimentação escolar no ano em que começou o surto de coronavírus no Brasil. Com os entes em posse do dinheiro, convencionou-se à época que caberia a cada município e estado decidir como redistribuiria os valores para garantir que os estudantes não ficassem desassistidos em relação à merenda no período em que as escolas permanecessem fechadas.
Com os dois caçulas de 7 e 8 anos matriculados na rede pública do Estado, Júnia recebeu em meio à pandemia seis parcelas do auxílio de R$ 50 distribuído pela gestão estadual às famílias em condições de pobreza e extrema pobreza. A Secretaria de Educação detalhou que orientou os gestores a usar os valores repassados para compra da merenda escolar na aquisição de alimentos para confecção de kits de alimentação. Segundo o governo de Minas Gerais, eles foram distribuídos a todos os alunos da rede até o final do ano passado. Fora os kits, a administração criou o Bolsa Merenda – o auxílio de R$ 50 por mês e por aluno durante um semestre. A faxineira se lembra de ter recebido os kits em apenas duas ocasiões, mas, atesta o depósito das seis parcelas no valor de R$ 100 para atender aos dois filhos.
A quantia, contudo, não bastou e foi necessário contar com doações de cestas básicas pela associação comunitária do bairro Cabana do Pai Tomás, na região Oeste de Belo Horizonte. “Não dava (para o mês), não. Sorte que eu tinha o auxílio (emergencial) também. E a gente sempre dá um jeito. Eu fazia uma ou outra faxina. Às vezes ligava para a associação e explicava que não tinha nem feijão.”
Do refeitório à mesa de casa
A estratégia adotada pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) não repetiu a do Estado. Famílias com crianças inscritas na rede municipal de educação receberam cestas básicas no período mais crítico da pandemia, entre março de 2020 e novembro de 2021. As opções feitas pelo governo de Minas Gerais e pela administração municipal chefiada pelo ex-prefeito Alexandre Kalil (PSD) não foram, entretanto, unânimes entre outros municípios e unidades da federação.
Em abril, a reportagem da Itatiaia buscou as secretarias de Educação dos 26 estados e do Distrito Federal e questionou qual foi a distribuição dos recursos do PNAE aos estudantes da rede pública durante a pandemia de coronavírus. Apenas Acre, Distrito Federal e Rio de Janeiro – além de Minas Gerais – responderam no prazo estipulado.
Por meio de nota, a Secretaria de Estado de Educação do Acre declarou ter distribuído kits de merenda contendo itens não-perecíveis. A resposta, entretanto, menciona a entrega dos alimentos apenas entre maio, junho e julho de 2020. A pasta também pontuou que foram entregues itens perecíveis que constavam em estoque nos armazéns regionais, como banana, laranja, batata-doce, farinha de mandioca, coxa e sobrecoxa de frango, polpas de fruta e temperos. Sem outros detalhes.
O governo do Distrito Federal (GDF), por outro lado, declarou ter optado pelo repasse dos recursos através dos programas Bolsa Alimentação e Bolsa Alimentação Creche, instituídos ainda em março de 2020. De acordo com a administração, o primeiro deles atendeu mais de 80 mil estudantes da rede pública até o ano passado – contemplou, porém, somente as famílias inscritas no Bolsa Família (recém-substituído pelo Auxílio Brasil). Já a Bolsa Alimentação Creche auxiliou com R$ 150 por mês as famílias de 23 mil crianças. O primeiro programa recebeu R$ 98,9 milhões; o segundo, cerca de R$ 35 milhões – entre recursos do GDF e do PNAE. Em relação à entrega direta de alimentos, o Distrito Federal ressaltou que distribuiu 645 mil cestas com frutas, legumes e verduras às famílias que manifestaram interesse entre 2020 e 2021.
Por fim, a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro afirmou ser responsável por cerca de 700 mil alunos em 1.195 unidades escolares que recebem recursos do PNAE. Sobre os repasses feitos às famílias em meio à pandemia, a pasta declarou apenas que “o auxílio na alimentação dos estudantes foi feito na forma de distribuição de kits de gêneros alimentícios” entre abril de 2020 e outubro de 2021.
Falta de investimentos e desassistência
Ainda que cada região tenha adotado as próprias soluções para mitigar os impactos da suspensão das aulas na alimentação dos alunos da rede pública, o governo federal decidiu reforçar por meio de uma legislação que o dinheiro oriundo do FNDE para a merenda poderia ser usado para a compra de itens alimentícios que seriam distribuídos às famílias. O instrumento usado foi a lei 13.987 publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 7 de abril de 2020 – válida em caráter excepcional em razão da situação de calamidade pública.
A postura da União, entretanto, se tornou alvo de críticas no Anuário do Observatório da Alimentação Escolar (OAE). Especialistas que assinam o relatório indicam que o governo não garantiu orçamento suplementar para que houvesse adequação e ampliação do PNAE no período. “Quando se sabe que o custo da distribuição da alimentação fora do ambiente escolar é muito mais alto”, cita o documento.
Segundo o diagnóstico, tal descompasso levou à desassistência alimentar de crianças e adolescentes e a programas irregulares e insuficientes de distribuição da merenda. Investigação feita pela organização entre os meses de julho e agosto de 2021 ouviu 900 estudantes matriculados na rede básica pública de todo o país a respeito da alimentação escolar em meio à pandemia, e a coleta indicou que 23% deles não receberam nenhum tipo de assistência no período. A exceção são aquelas famílias que receberam cestas básicas ou cartões-alimentação todos os meses. Elas representam apenas 14% do grupo, como aconteceu com Lorena de Oliveira Cardoso, 23.
Desempregada e dividindo parte de uma casa com o namorado e os dois filhos, de 1 e 5 anos, a moradora da região Leste de Belo Horizonte dispôs religiosamente dos alimentos distribuídos pela rede municipal entre o início da pandemia e novembro passado. Por outro lado, a quantidade não era suficiente. “Na pandemia eu recebi a cesta todos os meses. Mas, não dava até o final do mês. Acabava antes”, expôs. “Sorte é que aqui nós somos família, né? Então, quando acabava, a gente pegava com a minha irmã, com a minha mãe… Aí é assim”, citou em referência aos parentes com quem divide o lote. Para ela, o retorno às aulas presenciais se tornou sinônimo de tranquilidade em relação à alimentação de Miguel, o filho mais velho e único matriculado na educação infantil. “É melhor porque ele merenda na escola. Geralmente ele come arroz temperado, macarrão, essas coisas.”
Prejuízos à saúde
Filha do meio da auxiliar de cozinha Raquel Pereira da Silva, 37, Ana Júlia, de 5 anos, também figura entre as crianças que tornaram a se alimentar bem com a reabertura das escolas públicas. Diariamente, às 7h, ela e o irmão caçula, de 2 anos, são levados pela mãe à creche municipal do bairro Boa Vista, na região Leste de BH. Ali, eles permanecem em período integral – os irmãos mais velhos, de 9, 12 e 14 estudam em apenas um turno, e a primogênita de 19 não está na escola. “Quando chega à noite, a Ana Júlia conta que comeu arroz, feijão, carne, verdura, isto e aquilo outro. O Pablinho ainda não sabe falar direito, não, mas ele diz o que comeu e eu entendo”, detalha a mãe. Alimentos como carne e frutas nem sempre estão disponíveis na geladeira da família.
A falta dos nutrientes presentes nessas comidas afeta diretamente o crescimento de crianças e adolescentes, e a merenda escolar é responsável por garantir que essas necessidades alimentares serão supridas.
De acordo com a nutricionista Luana Caroline dos Santos, da UFMG, a má alimentação ou a baixa oferta dos nutrientes adequados provoca danos irreparáveis – especialmente na faixa etária do caçula Pablinho e na adolescência. E, nesse sentido, a distância da sala de aula, e principalmente das cantinas escolares, é sentida no desenvolvimento infantil e juvenil. “Talvez, a longo prazo, nós tenhamos a resposta sobre os impactos em relação à alimentação. Mas, que houve um impacto negativo para a saúde das crianças, nós temos certeza”.
E mais: “Os primeiros dois anos de vida são cruciais para o crescimento físico e o desenvolvimento cognitivo. O que é perdido nesse período, dificilmente dá para recuperar. Na adolescência é parecido. É o período em que o indivíduo atinge o pico máximo de velocidade óssea. Se ele está passando por restrição alimentar na adolescência, é irrecuperável o crescimento. Fisiologicamente, não volta mais.”
Frente à importância da alimentação para o desenvolvimento dos alunos brasileiros, a nutricionista vê com alívio o retorno às aulas presenciais e defende que a merenda servida nas escolas públicas é também um mecanismo para amenizar as desigualdades sociais. “A maior parte das crianças matriculadas nas escolas particulares tiveram acesso não só à educação por meio das aulas on-line na pandemia, como também acesso aos alimentos. Por outro lado, muitas das crianças nas escolas públicas acabaram privadas desse direito. Elas passaram a não ter a oferta da alimentação escolar”, detalha. “A grande questão é que a alimentação escolar corresponde de 20% a 70% das necessidades nutricionais de uma criança. Na escola integrada, por exemplo, os meninos recebem três refeições diárias que correspondem à quantidade necessária de calorias, vitaminas e minerais. Durante esses dois anos de pandemia, essas crianças acabaram privadas desse direito básico à alimentação adequada.”
[Esta é a segunda reportagem da série A Hora da Merenda, que se debruça sobre o dia a dia de quem depende do arroz com feijão na escola, o agravamento da fome em meio à pandemia e o desmonte do Programa Nacional de Alimentação Escolar. O conteúdo especial está dividido em quatro reportagens publicadas entre 15 de maio e 5 de junho. A série da Rádio Itatiaia foi financiada com recursos do 3º Edital de Jornalismo de Educação Jeduca | Itaú Social].