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A Hora da Merenda: a importância da escola na alimentação de crianças e adolescentes

Série de reportagens esmiúça a importância do arroz com feijão na escola para crianças e adolescentes, o agravamento da fome em meio à pandemia e o desmonte do Programa Nacional de Alimentação Escolar

Esta é a primeira reportagem da série A Hora da Merenda

Esta é a primeira reportagem da série A Hora da Merenda

Arte: Naice Dias | Itatiaia

Aos 51 anos, é da couve plantada no quintal que Síria Moraes Sales provê a principal refeição do dia para o filho Renan, 14. A hortaliça é preparada como único ingrediente da sopa servida à mesa da família no povoado de Batieiro, na zona rural de Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha. O dia de mãe e filho começa às 5h quando Síria o acorda para embarcá-lo em uma caminhonete que segue em direção à única escola estadual da localidade. Ali, ele assiste às aulas do 9º ano à espera do intervalo. O almoço servido no meio da manhã é a certeza de que o garoto terá pelo menos uma refeição reforçada no dia – nutritiva e que dá sustância. Isto quando a merenda é distribuída, o que, segundo a mãe, deixa de ocorrer até duas vezes por semana. “A comida é às 9h30, mas às vezes costuma falhar. Eu, como mãe, entendo [faltar merenda]. É muita criança na escola.”

A mais de quinhentos quilômetros dali e uma hora mais tarde, às 6h, Cristiane Souza, de 9 anos, pula da cama e começa a se arrumar. Gleici Valentina de Souza, 33, apressa a filha enquanto veste o caçula Isaque, de 8 anos, recém-diagnosticado no espectro autista. Antes do relógio bater 7h, os irmãos já estão na rua com a mãe, no bairro Madre Gertrudes, na região Oeste de Belo Horizonte, e partem para as instalações de um projeto sem fins lucrativos que acolhe crianças e adolescentes da região no contraturno da escola. Ali eles recebem a primeira refeição do dia. “Não é sempre que a gente tem um pão dentro de casa”, expõe Gleici. A penúltima refeição também é feita na escola, no período da tarde. “Nem todo dia a gente tem uma fruta para dar, né? Eu não tenho e sei que lá eles comem. Por isso evito deixar eles faltarem. Porque aí eu sei que tenho que manter mesmo só a janta e o que eles comem no final de semana.”

A garantia de comida no prato na hora do intervalo nas escolas públicas brasileiras é parte do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), regulamentado pela lei 11.947 de 2009. A legislação completa 12 anos em um mês e atende a cerca de 40 milhões de alunos brasileiros – da creche à Educação de Jovens Adultos (EJA) – com repasses da União destinados à compra de gêneros alimentícios nos estados e municípios. O propósito é assegurar que crianças como Renan, Cristiane e Isaque, mergulhadas em circunstâncias de insegurança alimentar, tenham acesso a refeições nutritivas e preparadas com alimentos de qualidade. De acordo com o Anuário do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), publicado em dezembro passado, a falta de oferta regular de comida nas escolas leva à fome.

O almoço e a janta servidos nos colégios do país são a única refeição do dia para muitas crianças e adolescentes – isto porque 14 milhões das 54 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza no Brasil têm menos de 14 anos, segundo a Síntese de Indicadores Sociais 2018, do IBGE.

Desempregada e afastada do mercado formal de trabalho desde o nascimento dos caçulas, Gleici, também mãe de duas adolescentes que não moram com ela, depende de faxinas esporádicas para conseguir completar a renda da família e garantir o sustento de Cristiane e Isaque. Com rendimento fixo de R$ 400 por mês advindo do programa Auxílio Brasil (substituto do Bolsa Família), ela se aproxima do critério do Banco Mundial para o qual domicílios com rendas inferiores a R$ 406 mensais estão em extrema pobreza. As contas dela, aliás, não fecham: despejada em fevereiro, Gleici paga R$ 500 de aluguel, uma conta de água que beirou os R$ 270 em abril e R$ 180 do medicamento para tratamento dos sintomas de Isaque. A comida oferecida aos filhos nos horários em que eles não estão na escola ou no projeto assistencial é preparada a partir de doações. “Antes eu não pagava aluguel, não pagava água. Então, dava, né? Dava para ter pão todos os dias. Hoje em dia, eu tenho que deixar os meninos na escola e no projeto, porque lá eu sei que os meus filhos vão comer, vão se alimentar, entendeu? Em casa, só o básico”.

Na outra ponta da cidade, no bairro Boa Vista, região Leste da capital mineira, a auxiliar de cozinha Raquel Pereira da Silva, de 37 anos, vive cenário parecido. Mãe de seis crianças e adolescentes com idades entre 2 e 19 anos, e grávida de seis meses do sétimo filho, ela se desdobra para alimentar a família com os auxílios dos governos municipal e federal – cerca de R$ 1.000. No prato, também o básico. “A gente só come carne quando eu recebo o Bolsa Família (hoje, Auxílio Brasil). Eu pego R$ 50, chego no açougue e peço uma coisa de cada: R$ 5 de linguiça, R$ 5 de salsicha, R$ 5 de suã… Até dar R$ 50”, apresenta a conta. “Quando acaba (a carne), eu compro ovo. Até que o ovo já subiu para R$ 20, então, agora é mais outras coisas mesmo. Verduras, essas coisas”.

Carne, arroz, feijão e macarrão

A opção por um alimento em detrimento do outro em decorrência dos preços nas gôndolas dos mercados – como trocar carne por ovo – é fruto da insegurança alimentar moderada, como esclarece a professora Luana Caroline dos Santos, do departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “A insegurança alimentar grave acontece quando não dá para escolher. São as famílias que estão nos açougues à espera de restos de carne, de ossos. Elas não têm comida. A insegurança alimentar moderada é caracterizada pela restrição, pela substituição. A família não compra a fruta, por exemplo, porque é cara e não dá saciedade. Ela escolhe um alimento ao invés de outro ou porque é mais barato ou porque atenderá a um número maior de pessoas na família”.

Suprir as lacunas da má alimentação e da escassez de ingredientes como carne, frutas e legumes no ambiente doméstico é uma das diretrizes do Pnae. Na ponta do lápis e seguindo as porções diárias de carne bovina recomendadas pelo Ministério da Saúde, a auxiliar de cozinha Raquel Pereira da Silva precisaria de R$ 243,50 por mês para garantir uma porção de acém por dia para ela, os filhos e o marido – que está desempregado. A carne é o corte de boi mais barato em Belo Horizonte, de acordo com levantamento feito pelo Instituto Mercado Mineiro em abril. O valor necessário é quase cinco vezes maior que os R$ 50 mensais que ela dispõe para compra do alimento. Essa é uma das carências nutricionais que a merenda escolar pretende resolver.

Matriculados na educação infantil pública do município em período integral, os caçulas de Raquel, Pablo e Ana Júlia, 2 e 5 anos, respectivamente, comem carne pelo menos quatro vezes de segunda a sexta-feira – em determinados dias a proteína é servida tanto no almoço quanto no jantar. Segundo o cardápio da Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) ofertou carnes de boi, frango, pernil e peixe em 34 refeições, entre almoço e jantar, preparadas nas instituições de educação integral durante os 21 dias letivos de março. No mesmo período, as crianças comeram frutas em 31 ocasiões – café da manhã, lanche da tarde e sobremesa.

O mamão picado e a carne com arroz e feijão são os pratos prediletos de Miguel, 5, matriculado em uma instituição infantil pública da região Leste de BH. A mãe dele, Lorena de Oliveira Cardoso, 23, está desempregada e recebe R$ 400 do auxílio pago pelo governo federal para cuidar dos gastos com o menino e com o caçula Enzo, que recém-completou um ano de idade. O valor não é suficiente, e as frutas e carnes não são constantes no cardápio das crianças quando elas estão em casa. “Hoje em dia, não dá para nada, né? Meu filho ainda mama (amamenta) e precisa de leite, eu compro fraldas, essas coisas… Não sobra”, detalha.

As circunstâncias são parecidas com as da prima Lúcia Silva de Oliveira, 22, que vive no mesmo lote de Lorena. Também desempregada, a jovem é mãe de duas crianças também inscritas na rede pública municipal – uma menina de 6 anos e um garoto de 4 – e está grávida de seis meses do terceiro bebê. Carnes são pouco frequentes nas refeições da família. É na escola que os filhos recebem o alimento com a continuidade devida. “Eu divido a compra da carne com minha mãe. Não dá para o mês inteiro e não é todo dia que nós comemos.”, cita.

Versões

A partir do relato da moradora do povoado de Batieiro, na região do Vale do Jequitinhonha, a reportagem procurou a assessoria de comunicação da Secretaria de Estado de Educação (SEE) e indagou no início de maio sobre a indisponibilidade de oferta da merenda escolar na instituição em que está matriculado o filho de 14 anos da entrevistada. O órgão negou a falta de alimentação escolar no colégio público. “Os recursos federais e estaduais estão sendo repassados em dia para a unidade de ensino, e a merenda é oferecida diariamente aos estudantes”, declarou.

[Esta é a primeira reportagem da série A Hora da Merenda, que esmiúça a importância do arroz com feijão na escola para crianças e adolescentes, o agravamento da fome em meio à pandemia e o desmonte do Programa Nacional de Alimentação Escolar. O conteúdo especial está dividido em quatro reportagens publicadas aos sábados entre 14 de maio e 4 de junho. A série da Rádio Itatiaia foi financiada com recursos do 3º Edital de Jornalismo de Educação Jeduca | Itaú Social].

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