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Cadê a merenda? A inflação comeu, e o congelamento da política que dá de comer no Brasil

Série de reportagens esmiúça a importância do arroz com feijão na escola para crianças e adolescentes, o agravamento da fome em meio à pandemia e o congelamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar

Esta é a terceira reportagem da série A Hora da Merenda

Esta é a terceira reportagem da série A Hora da Merenda

Lara Alves | Naice Dias

Abril de 2017. Um morador de Belo Horizonte precisava desembolsar cerca de R$ 415 por mês para comprar os produtos básicos presentes na mesa do brasileiro – três quilos de arroz, feijão carioquinha, farinha de trigo, leite, óleo de soja, seis quilos de chã de dentro, pão francês, açúcar cristal, café moído, manteiga, batata, tomate e banana. O valor correspondia a 44% do salário mínimo da época – R$ 937. Quatro anos depois, o gasto com o mesmo pacote pulou para R$ 568, ultrapassando a metade do que era pago pelo salário mínimo – R$ 1.100. Os dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, Administrativas e Contábeis de Minas Gerais (IPEAD) coletados nesses dois períodos dão conta do estrago da inflação no cotidiano da população.

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Se o salário mínimo não acompanhou os aumentos nos preços dos alimentos, os valores repassados pelo Governo Federal às escolas para a merenda escolar também não seguiram a inflação. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) determina as quantias entregues às secretarias estaduais e municipais para custeio da alimentação escolar a partir do número de alunos atendidos nessas regiões – a quantidade é multiplicada por um valor per capita fixo. Hoje, o Estado gasta R$ 1,07 por dia letivo com uma criança matriculada na creche ou em período integral; nas escolas indígenas e quilombolas, o valor cai para R$ 0,64; para os adolescentes nos anos finais do colégio, R$ 0,36. Estes números foram reajustados pela última vez em 2017, e estão congelados desde então.

Cálculo feito pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) a partir da projeção do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do IBGE para alimentos e bebidas indica que os valores deveriam ser reajustados em mais de R$ 1 em alguns casos para minimizar a corrosão do poder de compra frente à alta dos alimentos. Diante do congelamento dos recursos per capita direcionados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a Itatiaia questionou o FNDE e o Ministério da Educação (MEC) por e-mail em 25 de janeiro de 2022 sobre o porquê dos valores não terem sido reajustados. O órgão e a pasta também foram indagados sobre os valores que seriam transferidos ao PNAE durante este ano. Cerca de três meses depois, entretanto, as solicitações não foram respondidas.

Armários de casa vazios

Mãe de um adolescente de 17 anos que frequenta aulas em período integral em uma instituição da rede estadual de Minas Gerais, Eliane Faria Vieira, 40, não trabalha há três anos e depende do Auxílio Brasil para garantir o sustento do filho e o pagamento das contas de energia elétrica e água. Com o dinheiro contado, ir ao supermercado é uma tarefa matemática e meticulosa feita na ponta do lápis. “Compro só o grosso. Carne, assim, só de vez em quando. Aqui em casa a gente não liga muito para esse negócio de carne… É um ovo, o que tiver, come. Meu menino não reclama. Eu também não reclamo. Com o auxílio eu compro algumas coisas, pago conta de água e tenho uma ajuda do meu irmão para a conta de luz. Às vezes eu faço um biquinho”, detalha a moradora do bairro Boa Vista, à região Leste de Belo Horizonte.

A oito horas de distância dali, na zona rural de Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha, Síria Moraes Sales, 51, também recorre à quantia paga pelo Auxílio Brasil para tentar garantir o básico no prato do filho Renan, de 14 anos. Entretanto, o valor não é suficiente e ter a refeição feita no colégio como a única do dia é fato corriqueiro na rotina do adolescente. “O Bolsa Família (Auxílio Brasil) é praticamente para pagar energia e água, algo para comer. O resto a gente dá um jeito. Eu busco lenha e, quando dá, vendo os feixes de lenha para tentar ajudar. Às vezes a gente consegue fazer uma feirinha e vai levando a vida. Como a água é muito cara, aqui a gente planta cheiro-verde e pé de couve para ter uma sopa”, esmiúça. O marido de Síria sofre sequelas de uma tuberculose adquirida há quatro anos e não consegue trabalhar. “Quando não consigo uma cesta básica, meus pais me ajudam. O que eles comem, eles dividem comigo. Meu marido viajava antes para colher café, mas agora que ele adoeceu, não dá mais”.

Excluídas as adversidades próprias das realidades de cada uma, as condições alimentares das famílias de Eliane e Síria se degradaram de forma acentuada nos últimos dois anos em meio às altas nos preços dos alimentos – o que antes era apertado, tornou-se impraticável. “Carne não dá, não. Vou ser sincera. Eu não sei qual foi a última vez que comemos carne. Tem muito tempo que eu não compro, não”, relembra a moradora de Chapada do Norte. Estas mães integram a estatística alarmante dos brasileiros que se aproximam da fome. Hoje, mais da metade dos domicílios no país estão em situação de insegurança alimentar; significa que cerca de 116,8 milhões de brasileiros estão sem acesso permanente a alimentos. Outros 43,4 milhões não têm comida em quantidade suficiente e 19,1 milhões passam fome, segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia de Covid-19 coletados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RBPSSAN).

Os aumentos nos preços dos produtos nos mercados brasileiros e a corrosão do poder de compra das famílias são fruto de uma série de problemas econômicos e políticos, como esclarece o pesquisador Matheus Peçanha, do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Desde 2020 nós temos sofrido mais com a inflação vinda de questões na agropecuária. Primeiro, com uma seca recorde que encareceu não apenas os alimentos, mas também a energia elétrica. Foi uma época que, para citar um exemplo, feijão e arroz chegaram a acumular em doze meses mais de 60% de inflação. Logo depois, caímos na pandemia, que gerou uma desvalorização cambial. A carne encarece em seguida pelo aumento da demanda da China. E agora estamos saindo de um período muito chuvoso, que impactou nas hortaliças e tubérculos. A cenoura acumula mais de 100% de aumento nos últimos três meses”, cita.

Outro problema por ele indicado e que levou à elevação nos preços dos alimentos refere-se à diminuição dos estoques de grãos como feijão, arroz e soja mantidos pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). “Ainda que a alta inflacionária seja reflexo de fatores externos como a seca e a chuva intensa, há mecanismos para amenizar o problema, como os estoques de alimentos. A grande questão é que o governo interrompeu a política de armazenagem de grãos, que funcionava como um estoque regulador para segurar a inflação”, explica. “Sem armazenas esses alimentos não-perecíveis, o governo não consegue fazer frente às altas. É necessária uma política de alimentos que pense no longo prazo, além de uma política de renda básica para as famílias”, conclui.

A alimentação escolar torna a aparecer como um alívio para famílias em situação de insegurança especialmente nestes contextos de crise. A garantia das três refeições diárias feitas pelo filho Matheus, 17, na escola dão tranquilidade a Eliane. “Ele vai às 7h e chega aqui às 5h. Lá ele toma café da manhã, recebe um lanche e almoça. De tarde, ele lancha de novo antes de vir. Ele conta que no almoço tem arroz, feijão, sopa, legumes. Os amigos dele até brincam que ele faz ‘competição de comida’ no recreio de tanto que come”, brinca.

É o que também acontece com os caçulas de 7 e 8 anos da faxineira Junia Cássia Gomes, 33. Matriculados no turno da tarde em uma instituição da rede municipal de Belo Horizonte, os filhos dela recebem a última refeição do dia na escola. “De manhã, uma menina ‘olha’ os dois para mim. Uma hora da tarde eu chego, eles almoçam e eu levo na escola. Quando eles voltam, tomam banho e dormem. Eles sempre falam da merenda, que a comida está boa, que as professoras deram frutas… Eles gostam”, relata Júnia. Recebendo menos de um salário mínimo, ela paga R$ 600 de aluguel e conta com uma cesta básica da associação do bairro para alimentar os quatro filhos – ela têm, além das crianças, duas adolescentes. “O que ajuda mesmo é a cesta. Imagina se eu não ganhasse? Feijão, essas coisas, está tudo muito caro”.

Cadê a merenda? A inflação comeu

Ingrediente corriqueiro nos cardápios de colégios públicos, o macarrão é a opção mais barata preparada nos refeitórios. O prato com molho de frango e feijão para uma criança matriculada da primeira à quinta série custa R$ 0,74, segundo cálculo da Secretaria de Estado de Educação (SEE) de Minas Gerais. O valor orçado para preparo da refeição não é fixo e aumenta conforme a idade do aluno. A título de comparação, para estudantes de sexta à oitava série, o prato com macarrão sai a R$ 1,08. Ou seja, o preço varia de acordo com a quantidade de comida necessária para atender as carências nutricionais típicas de cada idade.

Surge, à vista disso, o primeiro problema do PNAE. O programa não distingue crianças e adolescentes conforme as porções necessárias para nutri-los, e ainda que um adolescente careça de mais calorias do que uma criança, o valor repassado para a alimentação de estudantes nas etapas iniciais é igual ao que é pago às secretarias para a compra das refeições de um aluno nas três séries finais – R$ 0,36.

O segundo porém diz respeito à falta de reajuste dos valores subsidiados pelo governo. Ignorando a aceleração da inflação, o repasse feito pelo FNDE às secretarias municipais e de Estado de Educação para aquisição de gêneros alimentícios não condiz com o preço real dos produtos. Enquanto o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) paga às pastas regionais R$ 0,36 para que seja preparada a merenda de uma criança ou adolescente de 6 a 14 anos, o valor atual da refeição mais barata disponível nas escolas de Minas Gerais é praticamente o dobro – R$ 0,74 pelo macarrão citado acima.

A disparidade é mais escancarada se avaliados os preços pagos pelo Estado de Minas Gerais para oferecer a merenda mais cara do cardápio elaborado pela pasta para as instituições mineiras. O prato de pirão de peixe com arroz, feijão e salada não sai a menos de R$ 2,68 quando respeitada a porção necessária para matar a fome de uma criança com idades entre 6 e 10 anos. Se a refeição for destinada a um adolescente de 15 a 17 anos, o preço sobe para R$ 4,95 – o valor é cerca de treze vezes maior que os R$ 0,36 pagos pelo FNDE.

Diante da não revisão dos valores e frente às altas constantes nos preços dos alimentos, garantir o incremento monetário para que não falte merenda na rede pública vira obrigação das administrações regionais. Exemplo disto é o Governo do Distrito Federal (GDF). A gestão de Ibaneis Rocha (MDB) recebeu cerca de R$ 42,7 milhões da União, em 2020, destinados à alimentação escolar. Entretanto, a Secretaria de Educação precisou inteirar cerca de R$ 10,8 milhões. Em território mineiro, o cenário se repetiu: por meio de nota, a SEE declarou ter obtido R$ 159,5 milhões do FNDE no ano passado. Contudo, para garantir o fornecimento da merenda escolar, injetou R$ 340 milhões próprios no aporte inicial.

[Esta é a terceira reportagem da série Hora da Merenda, que esmiúça a importância do arroz com feijão na escola para crianças e adolescentes, o agravamento da fome em meio à pandemia e o desmonte do Programa Nacional de Alimentação Escolar. O conteúdo especial está dividido em quatro reportagens publicadas aos domingos entre 15 de maio e 5 de junho. A série da Rádio Itatiaia foi financiada com recursos do 3º Edital de Jornalismo de Educação Jeduca | Itaú Social].

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