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Paolinelli era desafeto do milionário médico mineiro Antônio Luciano; entenda por que

Para fazer o primeiro Projeto de Assentamento Dirigido (PADAP) do país, ex-ministro desapropriou terras do médico, que era dono de grandes extensões na região de São Gotardo

Paolinelli: “Ele ficou com ódio de mim e chegou ameaçar minha família”

Nos anos 70, São Gotardo - no Alto Paranaíba - era um pacato município com cerca de 15 mil habitantes, inexpressiva pecuária de corte e longas extensões de terras improdutivas. Foi justamente nessa época que o então secretário de Estado da Agricultura, Alysson Paolinelli, falecido na última quinta-feira (29), começou a estudar o potencial do cerrado mineiro. “O país importava 30% de seus produtos agrícolas e as terras nobres e boas estavam exauridas”, lembrou o próprio Paolinelli, em entrevista à Revista da Faemg, em 2019.

Comecei a chamar a atenção das pessoas para a necessidade de encontrarmos áreas novas para que o Brasil conseguisse se auto abastecer, diminuir as importações e equilibrar a economia. Eu havia concluído que o aproveitamento do bioma para a agricultura era fundamental e dependia apenas de vontade política.

Um dia, Paolinelli teve uma ideia ousada: propor ao governador de Minas Rondon Pacheco a viabilização do primeiro PADAP (Projeto de Assentamento Dirigido) do país. O governador topou. Só que, para levar sua ideia adiante, Paolinelli teve que “comprar” uma briga para desapropriar uma extensa área improdutiva, cujo dono era o médico, empresário, usineiro e político Antônio Luciano Pereira Filho, conhecido por sua fortuna, escândalos com mulheres e dezenas de filhos.

“Dizem que ele tinha um retrato meu em cima da mesa e gostava de acertar pedras com um estilingue”.

O segundo desafio

O fato é que foram desapropriados 60 mil hectares nos municípios de São Gotardo, Ibiá, Campos Altos e Rio Paranaíba, num total de 95 lotes. Mas aí veio outro desafio: era preciso encontrar as pessoas certas para a ocupação, gente tecnicamente capacitada e com acesso à tecnologia para aproveitar o bom índice pluviométrico e a topografia plana da região. Gervásio Inoe, amigo de Paolinelli, e então presidente da Cooperativa Agrícola de São Paulo, ficou sabendo do projeto e o procurou.

Contou que tinha, entre seus associados, no Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo, produtores com o perfil que ele precisava, a maior parte descendentes de japoneses. E o mais importante: dispostos a migrar do sul para Minas.

Trinta deles foram escolhidos junto com outros 30 produtores da própria região de São Gotardo. Um deles foi Seiji Eduardo Sekita, que veio do Paraná em 1976, aos 23 anos e, hoje, é um dos maiores olericultores do Estado. Ele orgulha-se da cidade que São Gotardo se tornou e da qual, inclusive já foi prefeito, e da diversidade e qualidade dos produtos agropecuários cultivados. O município tem 50 mil hectares agricultáveis, a maior parte irrigada. É o que mais produz cenoura no país e também está entre os maiores produtores de alho, batata, beterraba e leite.

No início, muita desconfiança

Muitos moradores de São Gotardo viram a chegada dos “japoneses” com desconfiança. Do quintal de sua casa, no distrito de Guarda dos Ferreiros, o tabelião Noé Rafael Galvão, contou à revista da Faemg que observava a movimentação com certa apreensão. “Era como se estivessem tomando nossa riqueza”, disse ele, então com 78 anos. Noé era funcionário da empresa de empreendimentos imobiliários Fayal, que pertencia a Antônio Luciano, justamente o desafeto de Paolinelli, dono de grande parte das terras desapropriadas. “Eu me perguntava o que ia acontecer”, contou Noé. O que ele não sabia era que os nikkeis (filhos de japoneses nascidos fora do Japão) estavam tão assustados quanto ele.

Adaptação dos ‘japoneses’ foi difícil

Tamio Sekita, de 74 anos, irmão de Seiji, presidente do grupo Sekita, um dos maiores produtores de cenoura, beterraba e alho do país - lembra o quanto foi difícil a adaptação na pequena cidade e sem garantias de que o investimento daria resultados. Mas não havia como recuar. Tamio comprou o Lote 29, batizou-o de “Fazenda Chapadão” e começou a produzir soja, milho e trigo, culturas que dominava.

Quando aderiu ao PADAP, os vinte e poucos anos, ele tinha na bagagem algumas poucas peças de roupa, dinheiro para a compra de um trator e a companhia de seis funcionários que vieram com ele do Paraná.

Juntos, eles trabalhavam 12 horas por dia com resultados modestos. As coisas só começaram a melhorar dois anos depois, quando seus irmãos, Seiji e Makoto, também vieram para São Gotardo, trazendo os pais Katsuji e Etsuko. A princípio, o quinteto (pai e filhos) desenvolvia as atividades separadamente. Mas, com o tempo, adotaram um lema que transformaria a maneira deles de ver e administrar os negócios: o da “união faz a força”.

Raízes do cooperativismo

Inspirados na prática de mear a terra, eles criaram um sistema de cooperativismo. A base é a mesma: alguém tem vocação para produzir no campo, mas não tem dinheiro para adquirir a terra. Então, quem tem, a oferece e divide os lucros. A diferença é que, nesta versão, o meeiro recebe porcentagem um pouco maior, com base na própria produtividade. “Acreditamos que só oferecer a terra faz com que a pessoa se acomode”, explica Seiji. Além disso, eles fazem projeção de produtividade, o que possibilita que a colheita da cenoura seja diária, com oferta de quantidade e qualidade o ano inteiro.

O engenheiro agrônomo e administrador Jorge Kiryu é outro exemplo de migrante do sul do país que veio para a região em 1983, como meeiro. Aos poucos, conseguiu comprar parte da sociedade e investiu na plantação de hortaliças e frutas. Hoje, ao lado dos filhos, Carlos Alexandre e Tatiana, produz alho, abacate, café e cenoura, que rendem mais de 7 mil toneladas por ano. Logo, as terras ficaram forradas de cenoura, trigo, alho e batata.

Banco Central ajudou a montar a infraestrutura

Com o tempo, Antônio Luciano pareceu se conformar com a perda das terras e as coisas foram dando certo. Na mesma entrevista, Paolinelli contou que o Banco Central ofereceu os recursos para montar as casas dos colonos, construir 205 km de estradas rurais, sete pontes, acessos às glebas dos colonos, dois campos de pouso, 125 km de linhas de transmissão elétrica, postos de saúde e escolas. A terra foi financiada da forma que os produtores podiam pagar em 6, 10 e 12 anos. O município ganhou fórum, correios e telefonia, abrindo-se para um desenvolvimento acelerado. “O projeto superou minhas expectativas. E continua superando. Tenho muito orgulho ele. Foi a ideia mais bem-sucedida da minha vida”, disse o ex-ministro.

Maria Teresa Leal é jornalista, pós-graduada em Gestão Estratégica da Comunicação pela PUC Minas. Trabalhou nos jornais ‘Hoje em Dia’ e ‘O Tempo’ e foi analista de comunicação na Federação da Agricultura e Pecuária de MG.