Há alguns anos, decidi escrever um livro sobre planejamento público a partir de uma abordagem multidisciplinar. A intenção não era produzir um manual voltado a especialistas, tampouco uma obra excessivamente técnica, mas construir uma reflexão acessível, sem deixar de lado a densidade que o tema exige. Quis escrever algo que dialogasse com gestores, pesquisadores e com todas as pessoas interessadas na vida pública, oferecendo uma compreensão mais ampla dos fundamentos do planejamento.
Naquele momento, ainda não sabia exatamente como seria a estrutura ou que tom conceitual adotaria. Mas havia algo claro: o incômodo ao perceber que o planejamento vem sendo empurrado para as margens da gestão, muitas vezes reduzido a um documento protocolar, elaborado apenas para cumprir exigências legais. Ao longo do tempo, fui reunindo anotações, revisando práticas vividas em diferentes cidades, lendo e relendo autores, trabalhando conceitos, organizando e reelaborando ideias.
O que começou como um esforço solitário de reflexão transformou-se, com o tempo, em um exercício coletivo de aprendizado. O livro foi ganhando corpo, direção e propósito. Desse percurso nasceu O Poder do Planejamento: Contextos, Reflexões e Estratégias para a Excelência na Gestão Pública. Após ter sido publicada em junho e apresentada ao público na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, a obra tem nesta semana o seu lançamento oficial no Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG). É significativo que essa discussão ocorra justamente no Tribunal, cuja atuação, cada vez mais, ultrapassa a lógica da mera fiscalização.
Ao contrário de uma visão reducionista que limita o controle à verificação de atos e despesas, os Tribunais de Contas passaram, nos últimos anos, a exercer uma função estratégica na indução de boas práticas administrativas. Trata-se de uma reconfiguração que desloca o foco da sanção para a prevenção, valorizando a identificação de riscos e a orientação técnica aos entes fiscalizados.
A atuação contemporânea do controle externo tem buscado incidir não apenas sobre a legalidade, mas também sobre a qualidade do gasto, a efetividade das políticas públicas e a racionalidade na alocação de recursos. Esse movimento posiciona os Tribunais de Contas como parceiros fundamentais na institucionalização do planejamento no setor público.
Se, por um lado, as cortes de contas têm contribuído para a qualificação dos entes fiscalizados, por outro é essencial que as administrações superem a lógica do planejamento meramente formal, reconhecendo que o controle deve ser o espaço de diálogo técnico e aprendizado com foco na eficiência na prestação de serviços públicos à população. Afinal, bem exercido o controle externo amplia a capacidade estatal (em seus três níveis de governo) na produção de políticas públicas mais eficientes, coerentes e ancoradas no interesse público. É nesse ponto que o planejamento e o controle se encontram: ambos exigem método, compromisso com o futuro e responsabilidade com o presente.
Dividido em seis capítulos, o livro propõe uma leitura abrangente sobre o planejamento governamental, harmonizando reflexão, métodos e experiências. O primeiro capítulo parte da ideia de que planejar é, precipuamente, um ato político e ético, que envolve escolhas, definição de prioridades e responsabilidade com o futuro coletivo. O segundo capítulo apresenta um panorama histórico do planejamento público no Brasil. Parte da experiência orçamentária ainda no período imperial, avança pelas transformações da Primeira República, destaca o papel central do Estado na Era Vargas e no governo Juscelino Kubitschek, aborda o regime militar e chega até a redemocratização, com especial atenção ao marco representado pela Constituição de 1988.
Na sequência, o terceiro capítulo explora o papel central do diagnóstico como etapa fundante do planejamento público. O capítulo discute os impactos de diagnósticos frágeis ou inconsistentes, destaca a relevância da transição governamental como momento estratégico para revisão de dados e apresenta um checklist para orientar a elaboração de diagnósticos consistentes. Já o quarto capítulo propõe uma articulação entre os verbos planejar e governar, compreendidos como ações em permanente sinergia. São abordadas questões como coordenação, definição de agendas prioritárias e montagem de equipes. O capítulo nasce, em parte, das reflexões surgidas em uma palestra com o professor e ex-governador Antonio Anastasia.
O quinto capítulo se debruça sobre as especificidades da gestão pública em contraste com a lógica da gestão privada, destacando convergências possíveis, mas também os limites dessa aproximação. A partir da compreensão do orçamento público como instrumento de transformação social, o capítulo discute a governança na contemporaneidade e discute os desafios colocados pela transformação digital.
Por fim, o sexto capítulo é dedicado à dimensão estratégica do planejamento. Nele, são apresentados os principais marcos da trajetória da estratégia, desde suas origens no campo militar até sua incorporação pela gestão empresarial e, mais recentemente, pela administração pública. O capítulo distingue as esferas estratégica e tática, aprofundando temas como os fundamentos do enfoque estratégico, o papel do núcleo de governo, a relação entre liderança e decisão, a análise da matriz de interesses e a dinâmica dos conflitos.
Há, ao longo do livro, uma articulação entre teoria e prática, entre reflexão crítica e vivências. Em diversos momentos, discute-se a tensão permanente entre o planejamento e o improviso, entre a responsabilidade e a lógica acelerada e dispersiva das redes sociais, entre o interesse público e as demandas conjunturais. O planejamento não é apresentado como solução mágica, mas como horizonte necessário para qualquer governo que deseje enfrentar seus desafios com responsabilidade, método e compromisso com o futuro coletivo. Longe de ser um tema técnico, o planejamento está no centro das disputas democráticas contemporâneas. Ele define prioridades, estabelece metas, organiza o tempo, distribui recursos e aponta futuros possíveis. Recusar o planejamento é recusar o debate qualificado sobre o que queremos ser como sociedade.
O prefácio que abre a obra é, por si só, um presente. Nele, o economista, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento e professor titular aposentado da UFMG, Paulo Haddad, resgata o papel histórico do planejamento público no Brasil e denuncia seu esvaziamento nas últimas décadas. Para ele, o planejamento foi sendo reduzido a “braço orçamentário das políticas macroeconômicas da estabilização monetária”, enquanto crescia a crença de que bastaria “desacorrentar” os mercados para alcançar desenvolvimento, justiça distributiva e prosperidade. Diante desse processo, Haddad sustenta que “resgatar o processo de planejamento de médio e de longo prazo é corajoso profissionalmente, comprometido com o interesse público e contra a corrente doutrinária prevalecente”.
Em vez dos “ajustes incrementais”, ele propõe um novo estilo de governar baseado em ações estruturantes, com visão de futuro, capaz de enfrentar simultaneamente a crise social e a crise ambiental. “Não se pode esperar”, escreve, “que, de curto em curto prazo, sem o planejamento público de médio e de longo prazo, as atuais políticas econômicas nos levarão ao tempo do desenvolvimento.” E recorre a Lewis Carroll para ironizar a passividade institucional: “Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: Quanto tempo?”. Haddad aponta um dilema incontornável: ou seguimos a lógica do improviso que se autoperpetua ou ousamos reconstruir, com método, visão e compromisso, as condições de um desenvolvimento que não exclua nem adie o futuro.
Planejar, nesta acepção, é disputar sentidos, construir compromissos e interrogar o presente à luz de futuros possíveis. Em tempos marcados pela urgência, pela fragmentação e pela negação da política, defender o planejamento público é reafirmar a capacidade coletiva de organizar o tempo, reconhecer prioridades e imaginar transformações. É a crença na própria democracia.
O desafio que se impõe não é apenas técnico, mas profundamente ético: como construir uma cultura de planejamento que não seja capturada pelo formalismo nem paralisada pela retórica ou pela politicagem curto-prazista? Este livro, com todas as suas imperfeições e esperanças, é uma tentativa de alimentar essa pergunta. Porque, em última instância, planejar é também escolher o que não aceitar. É recusar o improviso como destino e a mediocridade eleitoreira como método. É reacender o fio de esperança de que o futuro pode, sim, ser obra da razão, da justiça e da vontade democrática.