Ouvindo...

O dogma da diversidade

O problema é que, via de regra: para ‘nós’ é lugar de fala, para ‘eles’ de cale-se

Padre Samuel Fidelis

Todo credo precisa de seus dogmas. É comum a todas as perspectivas religiosas, políticas, ideológicas uma série de “pressupostos” que lhes fundamentem a percepção de realidade. Não se pode pensar, por exemplo, o cristianismo fora da compreensão de Deus como Pai e Filho e Espírito Santo, ou da existência do céu ou do inferno... No âmbito ocidental, pensemos, a democracia é um grande dogma: é o princípio continente que fundamenta e protege todas as instituições. Isso porque, fora do horizonte democrático, as leis, o sistema, as instituições da vida pública perdem a razão de ser. A democracia está para a República como o “Fiat Lux” (faça-se a luz) está para Bíblia no livro do Gênesis...

Bom. Um dos dogmas necessários para a subsistência contemporânea é a diversidade. A globalização não trouxe apenas tensões. Junto com ela veio também a percepção de que: a existência humana não está dada; de que há tantas possibilidades de se comportar, de se vestir, de se pensar quantas são as bilhões de subjetividades; de que a vida é paradoxal, plural, múltipla.

O nosso desafio atual é que as Redes Sociais escancaram a acirram o óbvio: nós seres humanos sempre tivemos dificuldade de conviver com a diferença! A assimilação de dogmas nunca foi fácil... Se observamos bem, a história das culturas é, basicamente, a de guerras, de conquistas, de supressão de visões de mundo diferente. A agressividade sempre esteve presente, sobretudo, se o “inimigo” tem algum ponto de contato e semelhança, se ele é, levemente, diferente... Foi assim entre Atenas e Esparta, entre França e Inglaterra; é assim entre Israel e Palestina. Há muito em comum, por isso tanta antipatia...

Trazendo para o lado de cá, a moda, agora, sobretudo, num contexto brasileiro - de guerra civil e sutil - é entre “esquerda” e “direita”, as irmãs siamesas. Pouca gente parece perceber que o que motiva o ódio entre esses dois espectros tende a ser exatamente os “pontos de contato” entre ambos. Basicamente, os políticos que se digladiam em público e insuflam as massas são a representação ambidestra dos mesmos problemas! No país, conservadores e Progressistas - tendo o “centro” como paraninfo - se retroalimentam...

Muito se fala de evitar polarizações, sobre amplo espaço para o debate! O problema é que, via de regra: para “nós” é lugar de fala, para “eles” de cale-se! Talvez uma boa maneira de sair desse “nós contra eles” passa pelo reconhecimento de quanto “deles” mora em “nós”. Paradoxal? Sim! Um oximoro, mas, talvez, libertador...

Faria bem se cada lado se abrisse mais ao “diverso”. Afinal, quais são as dores por de trás de um discurso focado na tradição? O que há de razoável em quem defende que há valores dos quais não se pode abrir mão. Isso sob pena de desmoronar o que temos de mais caro, dos nossos legados e da nossa história? Pensando por outro lado, que razão há em que entende que é preciso mudar e romper com o que está caduco. Há algo de lucidez em pensar na necessidade de colocar vinho novo em odres novos (Lc 5, 37-39). Conter certos avanços significará arrombar odres e rasgar tecidos que já não permitem remendos, hipocrisia...

Ajuda muito, muito saber quanto do outro assusta dentro de nós! Penso que o que costuma incomodar à direita, na esquerda, é uma relação negativa com os próprios desejos. A ideia de um mundo sem normas insulta a memória de uma criança ensina a se repreender. De igual modo, parece que há algo de ordem e de norma que tende a assustas os progressistas. No fundo, no fundo, todo mundo sabe que a gente não pode ser, exatamente, tudo o que deseja. Todo mundo sabe que defender que não existe verdade é uma ideia autoimplosiva (pois se não existe verdade, essa afirmação é verdade que escapa à regra ou só mais uma mentira?). Não é segredo para ninguém que, quando a mente fica aberta demais, o cérebro pula para fora.

Bom. A proposta de nosso encontro da semana não é a de trazer soluções (como aliás, já é parte da rotina). Essas são apenas provocações... Provocações sob o desafio e riqueza dessa que é (ou deveria) ser um compromisso de “fé” contemporâneo: a diversidade. Dogmas são necessários enquanto ponto de partida; enquanto pressupostos fundamentais; enquanto acordos que conciliam o que, ao ser diferente, não precisa ser antagônico. Sem bons dogmas há sempre riscos de “confusões” e de heresias”...

Leia também

Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.