“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás.”
Em um dos contos mais intrigantes da literatura brasileira, a começar pelo título, “A Terceira Margem do Rio” (1962), João Guimarães Rosa nos conta de um pai que, sem motivo aparente, abandona a família para viver num espaço de um rio, “sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais”. O acontecimento estarrece toda a comunidade, amigos, parentes e vizinhos. A mãe, envergonhada, dizia que era “doideira”. O pai permanece ali, visível, mas inalcançável: “não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim”. Já o filho, cresce assombrado por esse gesto. No início, ele até tenta compreender e se comunicar com o pai, mas tudo o que encontra é o silêncio. Com o passar dos anos, já adulto, o filho se torna um “homem de tristes palavras”, sentindo-se culpado: “eu sou culpado do que nem sei”. Então ele decide experienciar o que o pai experienciou, para tentar compreender sua razão, substituindo-o na canoa:
— “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Neste instante, depois de tantos anos, o pai levanta os braços, fazendo um saudar de gesto, meio que concordando. Porém, no momento decisivo, o filho recua:
“Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.”
Em vez de repetir o gesto do pai, o filho escolhe trilhar o próprio caminho, continuar a sua própria vida e não a do seu progenitor. Ou seja, a terceira margem permanece como um espaço individual e intransferível, a qual não pode ser ocupada pelo outro. É, pois, um espaço tão íntimo que não pode ser herdado, apenas vivido. E que também não se repete.
O conto nos permite as mais variadas interpretações, mas o que este aprendiz gostaria de compartilhar é a necessidade de cada um encontrar o seu próprio rumo, sua própria margem, e não seguir o desejo do outro. Veja que, no caso, o filho só percebeu a necessidade de se livrar das sombras do pai em sua própria velhice. Apenas quando ele se dá conta de que “não podia” trilhar o caminho do pai, ele se liberta e se torna sujeito se si mesmo.
Partilho estas reflexões porque há grande pressão social e familiar pelo sucesso, sobretudo nos jovens recém-formados. Não é incomum que muitos de nós passem uma vida alimentados pelos desejos de “sucesso” do outro. E aí, a pessoa carrega um fardo que não é dela, pois acaba desejando algo que – em verdade – não quer. Dessa forma, fica presa aos anseios sociais e/ou familiares, acorrentada na esperança onipresente de terceiros, muitas vezes movida por uma necessidade de aceitação social, imposta pelas massas, por meio das redes sociais, seja por vínculos de amizade ou parentesco. Se olharmos em volta, os exemplos estão às escancaras, não só no Direito, não obstante seja um campo fértil para esse tipo de imposição social (“você tem que ser Juiz ou Promotor de Justiça” é uma delas). Quantas vezes não dissemos “sim”, aceitando que outros escolham por nós? Outro dia, a imprensa destacou o caso de um corredor que foi contratado para correr no lugar do inscrito, passando-se por ele, para falsear um bom tempo numa prova de entretenimento, que não valia absolutamente nada – salvo o desejo de aceitação. A finalidade era granjear, em torno do nome do substituído, elogios dos colegas e postar nas redes sociais.
Recentemente, conheci um poema curtíssimo e denso, de Antonio Cícero, “Voz”: “Orelha, ouvido, labirinto:/ perdida em mim a voz de outro ecoa? Minto:/ perversamente sou-a”.
Em quatro versos, o poeta nos faz um alerta contra a perda da própria voz, demonstrando-nos como somos habitados por vozes alheias que entram pelas orelhas, passam pelos ouvidos e formam um labirinto, ou seja, uma mistura, uma confusão entre o eu e o outro. E depois, tomados pelo discurso alheio, pelas ideias impostas, tornamo-nos dominados, deixando-nos falar por outro. O verso final é contundente: ao vivermos sobre as palavras, expectativas e caminhos dos outros, não só nos calamos, mas nos tornamos a voz do outro, mentindo para nós mesmos.
Portanto, em tempos modernos, é preciso coragem para desvelar as máscaras sociais, o que nos é imposto, na certeza de que fazer o caminho alheio, ainda que paterno ou materno, é perder a identidade. Há de se recusar esse destino e não entrar na canoa do outro, para que possamos então construir um desejo próprio, recusando a voz do outro que insiste em ecoar dentro de nós. É claro que ser nós mesmos impõe um distanciamento de muitas pessoas, em especial das que querem nos dominar, o que, convenhamos, também é libertador. Em suma, é muito bom fazer a travessia mais difícil: a que nos leva a nós mesmos, como na canção de Milton Nascimento:
Por tanto amor/ Por tanta emoção/ A vida me fez assim/ Doce ou atroz/ Manso ou feroz/ Eu, caçador de mim
Ops. Faleceu Sebastião Salgado (1944-2025), homem que denunciou, pelas lentes da câmeras, a miséria humana em suas mais variadas faces. Dentre muitos legados, essa passagem de seu livro verdade (2016), diz um pouco do que retratou em fotografia:
“Constatamos que o mundo está dividido em duas partes: de um lado a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro a privação de tudo para aqueles que não têm nada”.