Poucos lugares em Belo Horizonte condensam tantas camadas de história, arte e identidade quanto a Praça Rui Barbosa — embora quase todos a conheçam apenas como Praça da Estação. Ponto inaugural da Capital planejada de Minas Gerais, ela foi o primeiro rosto que a cidade apresentou ao Brasil. E ali, bem em frente à Estação Central, ergue-se uma estátua que há quase um século provoca, fascina e multiplica opiniões: o Monumento à Civilização Mineira, ou Terra Mineira. Oficialmente, trata-se de uma ode aos heróis e mártires do Estado. Na boca de alguns, ficou mesmo conhecido como o “Peladão da Praça da Estação”.
A alcunha irreverente não deve nos afastar de sua grandiosidade. Inaugurado em 1930, o monumento é obra do escultor ítalo-brasileiro Júlio Starace e foi encomendado pelo então presidente (como se chamava o governador à época) de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. A figura masculina de grandes proporções, musculosa e inteiramente nua — exceto pela estratégica bandeira de Minas que encobre parcialmente o órgão sexual — é, ao mesmo tempo, um gesto de bravura e um convite à especulação. A ideia de nudez frontal poderia causar incômodo na cidade ainda pacata dos anos 1930, e o detalhe da bandeira, ambíguo e sugestivo, tornou-se motivo de comentários espirituosos, ironias populares e, com o tempo, carinho afetivo.
O monumento, contudo, vai muito além de sua figura central. Em seu pedestal de granito repousam quatro relevos em bronze que compõem uma verdadeira aula de história mineira. Atrás, o expedicionário Bruzzo Spinosa simboliza os primórdios da colonização; à direita, Tiradentes encara seu martírio; à esquerda, Filipe dos Santos representa a revolta contra o domínio colonial; e, na parte da frente, Fernão Dias Paes, o bandeirante, evoca o desbravamento do território. No frontão da estrutura, a inscrição em latim Montani Semper Liberi — “Os povos da montanha são sempre afeitos à liberdade” — traduz o espírito indômito de um povo que preza por ser livre desde os tempos coloniais.
A localização do monumento não foi casual. À época, a Praça da Estação era vista como o verdadeiro portal da cidade, pois a ferrovia era o principal meio de acesso à nova capital. Para quem desembarcava, o homem semi-nu com a bandeira não apenas dava as boas-vindas, como representava o ideal de Minas Gerais: altivez, coragem e sacrifício. A grandiosidade da estátua, contrastando com as construções baixas ao redor, dava-lhe uma aura quase mítica — como se pairasse no ar.
Giulio Starace e a ideia original do monumento
Contudo, com a expansão da cidade e o declínio simbólico da estação ferroviária, o monumento perdeu parte de sua visibilidade. Ganhou novo fôlego em 2003, quando a praça passou por ampla reforma: o piso de concreto avermelhado trouxe unidade visual ao espaço, enquanto a nova pintura da Estação — em tons de ocre e cinza — destacou suas esculturas femininas e a torre do relógio. A revitalização devolveu à praça o posto de arena pública, palco de manifestações culturais e políticas, como nos anos 1970.
Hoje, o Peladão resiste. Não apenas como escultura, mas como símbolo vivo da complexidade mineira. Representa um tempo em que o Estado se via como protagonista nacional, mas também convida à crítica sobre as exclusões e silêncios de sua narrativa. Em tempos de novas lutas por memória e pertencimento, a estátua volta a ser observada: não apenas pela curiosidade estética, mas pela potência de sua presença histórica e artística.
Ali, na Praça da Estação, entre passos apressados, protestos, encontros e festas populares, o “Peladão” continua a nos lembrar que a cidade também se faz de metáforas — e que às vezes é preciso encarar aquilo que o tempo tentou esconder.