Se Alexis de Tocqueville pudesse contemplar os Estados Unidos neste ano de 2025, estaria desencantado. Na terceira década do século XIX, esse jovem aristocrata francês cruzou o Atlântico com a missão de estudar o sistema prisional da jovem república norte-americana, mas encontrou algo maior. Ficou fascinado pela vitalidade democrática de um país construído de baixo para cima, um lugar em que a liberdade individual, o pluralismo político e as instituições sólidas prometiam assegurar a legitimidade e a estabilidade ao sistema político.
Daquela experiência nasceu A Democracia na América, livro que se tornou um clássico justamente porque Tocqueville conseguiu enxergar naquele país em construção uma grande promessa de democracia plena, capaz de corrigir seus próprios erros pela força das instituições e da participação cidadã.
Hoje, porém, Tocqueville assistiria com desalento à materialização de seus maiores temores: uma democracia ameaçada por lideranças populistas, dispostas a corroer por dentro os próprios fundamentos do regime representativo. Esse desalento tem nome e sobrenome: Donald Trump. Com postura autoritária e personalista, ele encarna a antítese dos ideais tocquevillianos.
Tocqueville, que via na América o exemplo mais promissor de um futuro democrático, estaria hoje perplexo e não apenas pelo líder máximo do país, mas pela fragilidade coletiva que permitiu que esse tipo de liderança florescesse. A nação que um dia lhe inspirou esperança tornou-se um alerta sombrio sobre os riscos de quando a liberdade se dissocia da responsabilidade e da razão pública. Após mirar a China, o México e o Canadá com elevações tarifárias e verborragias, Trump voltou seus canhões comerciais contra o Brasil.
A imposição tarifária de 50% sobre produtos brasileiros foi anunciada como retaliação a decisões do Supremo Tribunal Federal e a políticas internas de regulação digital, medida estranha, espalhafatosa e profundamente contraditória com os fundamentos do liberalismo que ele próprio alega defender. Trata-se de um protecionismo tosco, movido por impulsos autoritários e cálculo eleitoreiro temperado com uma boa dose de patifaria. Trump é um político palanqueiro, intervencionista beligerante, disposto a sabotar o comércio global sempre que interesses políticos imediatos estiverem em jogo.
Como se não bastasse a violência tarifária, uma semana depois Trump acionou a máquina institucional dos Estados Unidos para intensificar o ataque. Sob sua ordem direta, o Escritório do Representante Comercial (USTR) abriu uma investigação formal contra o Brasil. O argumento oficial, apresentado pelo embaixador Jamieson Greer, combina alegações técnicas pouco consistentes com motivações políticas bastante evidentes.
O Brasil teria, segundo Greer, retaliado empresas americanas de mídia social como a Rumble e a Truth Social, ligada ao próprio Trump, por meio de decisões do Supremo Tribunal Federal. A esse núcleo se somam acusações vagas e mal costuradas: falhas no combate à corrupção, permissividade ambiental, distorções tarifárias e deficiência na proteção à propriedade intelectual. Mais recentemente, a ofensiva incluiu críticas ao sistema de pagamentos instantâneos PIX e até ao comércio popular da Rua 25 de Março, em São Paulo. O documento da investigação cita o PIX como uma suposta barreira ao livre mercado, por alegadamente prejudicar empresas como Visa e Mastercard, enquanto aponta a persistência da pirataria na 25 como sinal de desrespeito à propriedade intelectual. É um enredo confuso, que mais parece um exercício de intimidação do que uma disputa comercial legítima. O objetivo é claro: punir o Brasil por não se submeter aos caprichos de Washington. É a velha diplomacia da coerção, reeditada sob o pretexto do livre comércio, mas conduzida com a lógica de quem trata a soberania alheia como obstáculo a ser eliminado.
O que se vê, com nitidez, é o uso do aparato de Estado como extensão dos impulsos pessoais do presidente, uma prática que os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt apontam como um dos sinais mais perigosos de erosão democrática. Quando as instituições passam a servir aos interesses particulares de um líder, a democracia adoece. Tocqueville compreenderia, com amargura, que os Estados Unidos que ele viu nascer como promessa de liberdade deram lugar ao teatro de um poder concentrado, barulhento e hostil ao próprio espírito da democracia.
Mais grave do que a própria medida adotada por Trump tem sido a reação de parte da sociedade brasileira. Em vez de indignação diante de uma retaliação econômica injusta, vimos o aplauso de muitos. Segundo pesquisa Quaest divulgada nos últimos dias, cerca de 20% dos brasileiros declararam apoio à tarifa imposta contra o país. Esse dado revela algo inquietante. Não se trata apenas de crítica ao governo Lula, o que é legítimo no jogo democrático. O que se expressa ali é uma adesão inconsequente a um gesto que atinge o Brasil como um todo. A tarifa afeta exportadores, ameaça empregos, compromete cadeias produtivas e enfraquece nossa posição no cenário internacional. Aplaudir isso não é fazer oposição a um governo. É fazer oposição ao país. É permitir que o ressentimento político suplante qualquer noção de interesse nacional.
Democracia é o espaço da crítica, da divergência, do debate firme e honesto. Podemos discordar, cobrar, protestar, exigir mudanças. Podemos inclusive discutir com seriedade temas como a anistia, a atuação do Judiciário e os limites do poder. O que não podemos é aceitar, com naturalidade ou entusiasmo, que uma potência estrangeira interfira nos nossos assuntos internos por meio de sanções econômicas. Isso não é lucidez, é submissão. Quando uma parte da sociedade brasileira começa a justificar um ataque externo como se fosse parte de uma disputa interna, ela deixa de criticar o governo e passa a minar o próprio país. A isso não se pode chamar de patriotismo. Chama-se servilismo.
De todo modo, é possível dizer que o tiro saiu pela culatra. Mais de 70% dos brasileiros desaprovam a medida tarifária e a classificam como um ataque injustificado aos interesses do Brasil, segundo os levantamentos mais recentes. A imagem dos Estados Unidos, que por décadas simbolizou modernidade, progresso e democracia para boa parte da população brasileira, sofreu um abalo visível. De acordo com dados do Pew Research Center, a percepção favorável dos brasileiros em relação aos EUA vinha oscilando positivamente na última década, mas agora enfrenta uma reversão abrupta. Ao invés de fortalecer sua imagem, Trump desperta um sentimento difuso de rejeição e desconfiança.
Aproveitando o sentimento nacionalista e a indignação contra ingerências externas, o presidente Lula reassume o protagonismo político com novo fôlego. Pesquisas indicam crescimento de sua base de apoio e a retomada de sua viabilidade eleitoral para 2026. Em política, como no xadrez, o erro do adversário pode ser o movimento decisivo para a virada. Trump, que se apresenta como um mestre da negociação (como descreve em The Art of the Deal) esquece que países não são apenas mercados, mas também territórios de memória, cooperação e orgulho coletivo. Ao agir com truculência, minou pontes que levaram décadas para ser construídas. Em nome de supostamente defender os Estados Unidos, arranha a imagem global de seu próprio país.
É legítimo e necessário que o Brasil debata internamente temas espinhosos como a anistia, os limites dos Poderes ou o papel das instituições. Isso é parte da vitalidade democrática. O que não se pode aceitar, sob nenhum pretexto, é que potências estrangeiras intervenham de forma velada ou explícita nos processos internos da nação. A troca de soberania por alinhamento ideológico é uma ilusão perigosa. Até o general Hamilton Mourão, ex-vice-presidente da República e hoje senador, foi claro ao reagir: “Não aceito que Trump venha meter o bedelho em um caso aqui que é interno nosso.” Sua declaração não foi apenas um desabafo: foi a reafirmação de um princípio civilizatório.
A lição, portanto, é dupla. Aos brasileiros, o episódio recorda que divergências internas não podem nos cegar diante de agressões externas. Aos norte-americanos, mostra que sua liderança global não se sustenta apenas por poder econômico ou militar, mas também pela confiança que os povos depositam em suas instituições e valores. Tocqueville sabia disso. Ele viu na democracia americana um ethos coletivo baseado no equilíbrio entre liberdade e responsabilidade. Hoje, porém, o que se vê é o avesso desse sonho.
O trumpismo, com sua retórica agressiva, sua aversão ao diálogo e sua ânsia por controle, representa uma caricatura grotesca da liderança “democrática”. Tocqueville estaria, sem dúvida, desapontado. O país que um dia simbolizou a promessa da democracia transformou-se, sob Trump, em espelho do que ela pode se tornar quando perde o rumo. No fim, acho que cabe um agradecimento ao presidente Trump. Havia tempo que os brasileiros não falavam tão fortemente em soberania. O presidente estadunidense nos relembrou este conceito tão necessário quanto inegociável. A soberania não se negocia. A democracia não se intimida. E a história, implacável, não absolverá os que a traem em nome do oportunismo.