Ouvindo...

O ciúme

Diz-se apaixonado, mas ameaça a “amada” nas entrelinhas, num sentimento possessivo, vendo a mulher como coisa

“Almas ciumentas não operam assim;/ O ciúme que sentem não tem motivação,/ O ciúme vem do ciúme. É um monstro/ Que a si mesmo gera e a si mesmo procria”

Eis um trecho de diálogo entre Emília e Desdêmona na tragédia “Otelo” (1604). A obra começa retratando a história do mouro Otelo, “carneiro preto, velho” (I.I.87-8), forjado nos campos de batalha em defesa do povo de Veneza e que se casa secretamente com Desdêmona, ferindo “as leis da natureza”, pois ela era uma mulher de casta diferente: filha de um nobre Senador, veneziana, “ovelha branca” e erudita. Consumado o matrimônio, imediatamente, ela se coloca em posição de submissão, pois, na sociedade patriarcal do final do Renascimento, à esposa era reservado lugar subalterno, domesticado. Com o casamento, Desdêmona passa a ser tutelada pelo marido, inclusive chamando-o de “amo”, adotando na relação conjugal um papel de servidora.

Após a cerimônia, ambos partem para um período de núpcias, em que Otelo se vê completamente apaixonado. Entretanto, desde já dá sinais de intensa agressividade:

“Rica criatura! Que eu caia em perdição,/ Mas eu te amo! E quando eu deixar de te amar,/ Vai ser o Caos novamente” (Ato III, cena III, 9I-3).

Da mesma forma que ele se diz apaixonado, ameaça a “amada” nas entrelinhas, num sentimento possessivo, tecido numa suposta posição hierárquica superior dos homens, os quais viam a mulher como coisa, um bem de sua propriedade. Entretanto, ela – como muitas mulheres na atualidade – desconsidera os indícios de psicopatia e violência do marido, fiando-se na confiança amorosa.

Após as “nove luas desperdiçadas” em núpcias, Otelo é enviado para uma batalha em Chipre e solicita a sua esposa que o acompanhe. É neste momento que se iniciam as formulações maldosas de um alferes, preterido por Otelo numa promoção ao cargo de tenente, talvez o vilão mais perverso dentre todos os personagens de Shakespeare: Iago! Apossado por inveja e ciúme, como um “monstro de olhos verdes que se diverte com a comida que o alimenta”, ele elabora um plano para incutir na mente de Otelo dúvidas sobre a fidelidade de Desdêmona. Habilidoso na arte das narrativas, todo o plano é tramado aproveitando-se da vulnerabilidade de Otelo que exteriormente se mostrava forte, mas que interiormente era frágil e inseguro, daí a razão pela qual dava vazão às suas frustrações com violência. Instaurada em sua frágil personalidade a dúvida, Otelo, que hoje seria o equivalente ao “homem macho”, “chefe da casa”, “homem de verdade”, obcecado por um suposto e falso papel de controle, de “senhor do matrimônio”, é, em verdade, um tolo facilmente enganável.

Sob o escudo da força física e da demonstração de seus “feitos extraordinários”, Otelo escondia suas fraquezas, ele não era o que era: “Eu não sou o que sou”. Na verdade, como todo ciumento excessivo, Otelo se considerava menos atraente do que os outros homens. A sua ira era uma manifestação inconsciente de seu complexo de inferioridade, do medo da perda e até de um desejo homossexual reprimido. É nesse contexto que Iago encontra na mente de Otelo um “jardim” facilmente contaminável por ervas daninhas.

Absorto pela possibilidade da traição, Otelo insiste para que Iago, a quem chama de honesto e bom, lhe traga “uma prova ocular”, sem jamais oferecer à esposa, a quem passa a chamar de “puta”, qualquer possibilidade de explicação. É nesse contexto que Iago subtrai o lenço com que Otelo presenteara Desdêmona e o deixa entre os pertences do suposto amante, Cássio. Ao se deparar com o lenço caído no quarto de Cássio, Otelo se convence definitivamente da traição da esposa. Em seguida, ele a chama de “puta” na frente de diversas pessoas e ordena que ela vá para o quarto. A esposa, submissa ao marido, acata a ordem, veste a camisola da noite de núpcias e é morta por ele. Ao descobrir que fora enganado, Otelo demonstra sua covardia, advinda do machismo, ao se matar.

O curioso é que durante todo o trajeto de convencimento da traição da esposa, Otelo dá sinais cada vez mais intensos de ira, irracionalidade e violência. Desdêmona, que no início do texto se mostrara uma mulher de personalidade forte, mesmo percebendo todos esses sinais, renuncia a qualquer possibilidade de defesa, aquietando-se de tal maneira que, acudida ao leito da morte, sequer acusa o marido de feri-la, assumindo a autoria do ato. Quando lhe perguntam quem fizera aquilo, responde:

“Ninguém. Eu mesma. Adeus” (Ato V, cena II, 127).

A razão de tal postura provavelmente decorre da imposição social pela manutenção do matrimônio a qualquer preço e da submissão da mulher ao homem. Tanto é que a última cena é caracterizada pelo pedido de Desdêmona para que a cama fosse feita com os lençóis do casamento, os quais simbolizavam a união eterna do matrimônio. Esta peça de Shakespeare, além de uma tragédia em decorrência do ciúme, é, ao fim e ao cabo, uma ode à libertação feminina, à necessidade de desconstrução de relações infelizes, subalternas e forjadas nos abusos que, normalmente, revelam-se aos poucos, em doses homeopáticas, mas que, com o tempo, se transformam em cavalares.

Trago estas reflexões ao leitor por ocasião das celebrações, na última semana, do Dia Internacional das Mulheres, quando não temos muito o que comemorar: a cada 17 horas, uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil; três em cada 10 brasileiras já sofreram algum tipo de agressão por questão de gênero. Segundo o painel da violência contra a mulher, do CNJ, em 2024, tivemos um aumento considerável no número de casos envolvendo violência contra mulheres. Em Minas Gerais, uma oficial de justiça foi agredida – ironicamente, por um policial militar – enquanto ela cumpria um mandado judicial, justamente no dia em que era comemorado o Dia Internacional da Mulher. Portanto, a violência contra a mulher é algo ainda permanente em nossa sociedade. E, dentro dos relacionamentos, ela pode ser alimentada pelo ciúme excessivo e possessivo que leva a agressões e até à morte.

No início dos relacionamentos, assim como em Otelo, a pouco e pouco os sinais de violência e desconfiança desmotivadas se apresentam de forma singela, deixando uma esperança de que “vai melhorar”. Entretanto, pelo que colho e observo, assim que desvelado, é essencial uma atitude imediata, preferencialmente diante do primeiro indício, afastando-se do namorado/companheiro/marido, relatando o fato aos familiares e amigos, buscando guarida no Ministério Público, no Poder Judiciário, na Delegacia de Mulheres, etc. Não ceder à cobrança social pela manutenção das relações, sobretudo o casamento, aos pedidos de desculpas e suplicas é blindar-se de problemas futuros. É isso, caro leitor, não amiudar os primeiros sinais, ao contrário do que fez Desdêmona...

Ops. Andaram dizendo por aí que, segundo a Bíblia, o chefe da casa é o homem e a mulher nasceu para auxiliá-lo. Tive a mesma reação que você, caro leitor. Ora – Maria Madalena! Sabemos que esse tipo de discurso, além de desprovido de qualquer fundamentação bíblica, serve apenas para perpetuar a violência contra as mulheres. É por essa e tantas outras que o mundo precisa cada vez mais do Papa Francisco, por quem tenho tanto rezado.

Ops.2. Pouco antes da obra de Shakespeare ser escrita, Elisabeth I era a herdeira do trono inglês, mas caso se casasse, passaria à posição de obediência ao marido e, consequentemente, perderia o trono. Ela nunca se casou...

Ops.3. Peço desculpas a Capitu, pois tratar do ciúme sem mencionar “Dom Casmurro” é quase uma traição à literatura brasileira, mas é preciso poupar um pouco Machado de Assis. Ainda precisarei muito dele nas colunas seguintes. Bentinho se safou dessa...

Leia também

Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
Leia mais