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Lança, lança perfume

Esse momento de celebração traz consigo suas ambiguidades, certos ressentimentos

O tempo do Carnaval é um momento belo de celebração e de festa. Florescem, em meio a sorrisos e gritos, as fantasias mais inocentes, rebeldes, meio paradisíacas, meio profanas. A gente se reconecta com a despretensão, se autoriza a “desajuizar” a preocupação com o tempo, com o constrangimento do corpo, com o mal-estar que é ter que fazer vista grossa da própria vida, dos próprios anseios.

Esse momento de celebração traz consigo suas ambiguidades, certos ressentimentos. Para quem faz a catarse dos dias de luta, na festa e na desforra,  serve o alerta de que  a intensidade, a vazão das próprias pulsões não dá conta de, por muito tempo, preencher as faltas.

Se, por um lado, a alegria carnavalesca é resistência e transbordamento, por outro, o prazer pelo prazer - passada a dopamina e a euforia - traz consigo o efeito rebote de vazios profundos. Para quem é ressentido com os próprios desejos, quem demoniza a “festa do povo”, seja dada a consciência de que jejuns e penitências combatem demônios, mas não são muito úteis contra “fantasmas”. Cedo ou tarde o que se recalca “pede as contas”, seja como deslize, seja como sintoma. Se a luxúria leva almas ao inferno, a soberba é a traça da sanidade, da santidade.

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Para os católicos, aproxima-se um tempo de penitência. As Missas de Cinzas, que abrem a Quaresma, são sempre as mais badaladas. Antes que um tempo de “sufocar o desejo”, “satisfazer culpas”, a quaresma marca um momento de graça. Sim, refletir sobre o próprios “desvios” é graça. Nenhuma “penitência” faz sentido se antes  não nos for dada a experiência agraciada do “Amor de Deus”. Sem ela, serão vans nossas ofertas e sacrifícios.

Lembremo-nos da pecadora, na casa de Simão, que lança aos pés de Jesus o vazio de sua vida, suas lágrimas, seu perfume. Dela o Mestre diz: “os muitos pecados que ela cometeu foram perdoados, porque ela demonstrou muito amor” (Lc 7,47). Vejamos: o  que se deve interpretar é que, o ato de estar aos pés de Jesus, com seus cabelos e suas lágrimas, é a consequência do Amor, da Graça com que Ele a alcançou. Não é que ela tenha agido assim, como penitente, e, por isso, tenha sido perdoada. Ela age penitente e se coloca aos pés para demonstrar o que já recebeu: a graça do arrependimento, como resposta ao Amor que já lhe amou.

Nossos jejuns e abstinências não são necessários para que Deus nos ame. A penitência quaresmal não é a “satisfação” de um “déficit”. Jesus cancelou o débito que pesava sobre nós (Cl 2,14). É por Graça que somos salvos. E isso vem de Deus. É dom d’Ele (Ef 2,8). Portanto, não é questão de dívida, mas de dádiva. 

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Deus nos livre dos excessos, da ilusão de que é o prazer exagerado que confere sentido à vida. O Senhor afaste de nossas práticas penitenciais todo orgulho. Os cristãos, nos dias “apolíneos” do pós “festa da carne”, em nossas orações, nossos jejuns e em nossa esmola não nos alucinemos! Tão perigoso quanto acreditar em “amores de carnaval”, seria  pensar que a castração dos próprios desejos é ponto de partida para ser “aceito” e “querido” por Deus.

Sim. Acredite. Vale a pena ter momentos de festa, mas também de reflexão e de penitência. Nestes tempo onde todo mundo “se acha”, faz bem lembrar que a “culpa”, em doses homeopáticas, também salva. Só perversos e cretinos não se arrependem de vez em quando.

Vivamos, na quaresma, um arrependimento sincero das obras más, abrindo mão de tudo aquilo que não corresponde ao que se espera de cristãos: sejam os excessos, sejam as chatices do moralismo.

Não sejamos como os “pagãos": nossa alegria não nos iluda da gravidade da vida, nossa penitência não nos faça soberbos e chatos.  Os “pagãos” é que se entristecem fazendo penitência. Jesus alerta que, os cristãos, devemos nos penitenciar  com “notas” meio carnavalescas, isto é, com o rosto alegre e lançando perfume (Mt 6, 16-18).

Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.