Ouvindo...

“Ainda Estou Aqui” e o bom uso dos nossos símbolos

Filme de Walter Salles supera nosso complexo de vira-lata e nos permite resgatar parte de nossa história, num momento em que torturadores chegam a ser exaltados por alguns políticos e artistas

Filme concorre a três estatuetas no próximo domingo

A ideia de um Oscar para o Brasil na maior premiação do cinema internacional começa a viçar na alma de cada um de nós, em doses cavalares e com uma esperança descomunal, agora que já encerrada a votação para escolha dos filmes premiados (o resultado será divulgado aos 02 de março). E a razão é por todos conhecida: O filme “Ainda Estou Aqui”, com o menor orçamento entre seus concorrentes, foi indicado nas categorias “Melhor Filme” e “Melhor Filme Estrangeiro”, além da indicação de Fernanda Torres para a categoria de “Melhor Atriz”, o que já é um recorde no número de indicações de um filme brasileiro e motivo de abundante comemoração.

O cinema brasileiro hoje chama a atenção do mundo sob um prisma diferente das festas, do sexo fácil e do futebol que, convenhamos, não tem nos dado muitas alegrias. Conseguimos, com a genialidade da produção cultural brasileira, mostrar o valor do nosso povo, a nossa sensibilidade e parte do nosso triste passado. A nossa arte permite aos estrangeiros conhecer um pouco um “tempo/ página infeliz da nossa história/ passagem desbotada na memória/de nossas novas gerações” (Chico Buarque).

O filme de Walter Salles, além de superar nosso complexo de vira-lata, tão bem descrito por Nelson Rodrigues como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”, “um problema de fé em si mesmo”, também nos permite resgatar parte de nossa história, num importante momento da quadra do país em que torturadores chegam a ser exaltados por alguns políticos e artistas. Lembro que, em 2018, exatamente 30 anos depois da redemocratização, pessoas foram às ruas pedindo intervenção militar. De lá para cá, numa espécie de amnésia coletiva, esses movimentos cresceram, chegaram às manifestações em frente aos quarteis pedindo intervenção militar e culminaram num atentado aos três Poderes da República, num ataque furioso e criminoso contra a nossa Democracia, no dia 08 de janeiro de 2023. Esse episódio precisa ser coagulado, para que no futuro ninguém tente reescrever tempos tenebrosos da história brasileira, como tentaram fazer na última década em relação aos anos de chumbo.

Daí que, em relação ao filme, este aprendiz poderia deitar a pena para a atriz Fernanda Torres, que carrega magistralmente a proibição do luto de uma mãe que silencia suas dores para proteger os filhos, ou para a história de Rubens Paiva que, além de preso, torturado e assassinado, jamais teve o corpo encontrado, ou de Eunice, para quem foi negado o sepultamento do marido. Poderia também chamar a atenção para a necessidade de preservação da memória, para que os jovens tenham a exata dimensão dos horrores de uma ditadura e do que foi o golpe militar de 1964. Também poderia falar da importância da Comissão Nacional da Verdade com seus depoimentos chocantes do que se passava nos porões sombrios dos quartéis.

Mas, não, não pretendo abordar esses elementos. Vamos tentar um outro prisma. Nos últimos anos, deixei pendurada no armário uma crítica ao uso dos nossos símbolos, em especial, de nossa bandeira. Muitos dos que a exibiam autodenominavam-se verdadeiros patriotas, pessoas que amavam verdadeiramente o Brasil e seu povo. Vi, nos últimos tempos, pessoas próximas se apropriarem da bandeira nacional, como um símbolo de patriotismo. E agora, quando estamos às vésperas de um enorme título nacional, capaz de levar a bandeira do Brasil a um hasteamento jamais visto, muitos desses patriotas simplesmente sumiram. E com eles suas bandeiras. O leitor há de concordar que isso é muito estranho. Não existe maior amor à pátria do que reverenciar a arte e a cultura do próprio país, afinal, são elas as verdadeiras expressões populares de nosso povo.

Tal sumiço seria porque não estavam preparados para um tal fenômeno advindo da arte brasileira? Seria apenas desprezo à cultura? Seria repulsa pelo que o filme escanara e muitos reverenciam? Ou o uso da bandeira nacional apenas arrastava consigo ambições adjacentes? Seria todo esse amor à pátria um truque, uma apropriação escusa, um despiste para outros interesses? É bom lembrar que o excesso de ufanismo esteve presente na ditadura militar. Havia inclusive uma propaganda oficial do Governo, cópia barata de um antigo bordão americano, bastante utilizada nas janelas dos automóveis: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Gilberto Gil, com a genialidade que lhe é peculiar, musicou parodiando o lema com uma ode à liberdade, de forma cirúrgica:

O seu amor/ Ame-o e deixe-o livre para amar/ Livre para amar/ Livre para amar/ O seu amor/ Ame-o e deixe-o ir aonde quiser/ Ir aonde quiser/ Ir aonde quiser/ (...) Ame-o e deixe-o cansar/ Ame-o e deixe-o dormir em paz.

Tempos depois, já na redemocratização, comentou sobre a canção:

” A intenção foi brincar com o slogan da ditadura, ‘Ame-o ou deixe-o’, promovendo, através da substituição de uma conjunção, um corte profundo de ruptura no significado reducionista, possessivista e parcial do aforismo oficial, símbolo do fechamento e da exclusão maniqueísta, para criar um outro, com outra moral, a do amor – e, portanto, absolutamente generoso, democrático e libertário.”

Ops. Quem verdadeiramente ama o Brasil não deveria apoiar a taxação de nossos produtos e a deportação de nosso povo. E muito menos bater continência para a bandeira de outro país. É, talvez o complexo de vira-lata não tenha acabado, estando apenas à espreita.

Ops. Caro leitor, para o carnaval, a maior festa popular, que tal um samba? O de Chico Buarque cai bem:

Então, que tal puxar um samba?/ Puxar um samba legal/ Puxar um samba porreta/ Depois de tanta mutreta/ Depois de tanta cascata/ Depois de tanta derrota/ Depois de tanta demência.

Leia também

Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.