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O Espelho

“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?

“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?

O espelho devolvia a imagem esperada pela rainha:

- Não majestade, neste reino não há ninguém que se compare à tua beleza”

A recorrente pergunta da madrasta da Branca de Neve, que tanto permeou os contos de fada da minha meninice, nos põe diante deste intrigante objeto, o espelho, que nos permite duplicar a imagem em tamanho idêntico ao do objeto refletido, permitindo-nos ver como os outros nos veem. Talvez por isso o espelho seja tema de tantas lendas e mitos ao longo da história, como o de Narciso. Segundo uma das inúmeras versões mitológicas, ele era um jovem muito belo, condenado a viver até o dia em que contemplasse a própria beleza. Induzido pela deusa Hera a lavar o rosto nas águas de um rio, o jovem vê o reflexo de seu próprio rosto e apaixona-se por si mesmo. O amor foi tamanho que, perdido na própria contemplação, morreu afogado, após mergulhar no rio em busca do que viu: ele mesmo.

Vê-se que tanto Narciso quanto a madrasta foram vítimas de uma ilusão. O espelho não necessariamente reflete a realidade, pois ele pode apenas nos mostrar o que queremos ver, o que não somos. Aliás, a própria origem da palavra espelho, que vem do latim “speculum”, também tem o sentido de especular, procurar. Em 1882, Machado de Assis publicou um conto em que trata do “esboço de uma nova teoria da alma humana”. Nele, cinco amigos discutem questões humanas e os “mais árduos problemas do universo”. O personagem principal, Jacobina, acredita que “todos os seres humanos têm duas almas e não apenas uma, como era comum se imaginar; uma alma interior e uma alma exterior”. E mais: a alma interior olha de dentro para fora e a exterior de fora para dentro.

A fim de comprovar sua teoria, ele conta o causo de um jovem que, ao ser nomeado alferes da Guarda Nacional, foi convidado por sua tia Marcolina, que queria vê-lo fardado, para uma temporada em seu sítio “escuso e solitário”. Lá, em razão de seu título, ele é recebido com todas as honrarias e todos passam a chamá-lo pela alcunha de “o alferes”, “senhor alferes”, “nhô alferes”, e não pelo seu nome. Em seu quarto, a tia colocou a melhor peça de mobília da casa: um magnífico espelho. O sobrinho então decide por lá permanecer, lugar em que era permanentemente bajulado, tornando-o insensível às dores humanas: “o alferes eliminou o homem”.

Semanas depois, um acontecimento inesperado muda os rumos de sua existência. Sua tia Marcolina viaja para visitar a filha que estava adoentada e, com isso, os escravos, criados e até o cachorro abandonam o sítio. Ao ficar sozinho, sem os bajuladores, o jovem perde a sua alma exterior, segundo Alfredo Bosi, “o olhar dos outros que o constituíam e sustentavam a sua nova identidade”. Triste e deprimido, ele sente “uma sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular”, numa morte da alma interior. A sua existência estava reduzida ao seu título: “A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado”.

A fim de resgatar sua existência, ele decide colocar a farda para se olhar no espelho:

“Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir”

Machado nos mostra os perigos de deixar a nossa alma exterior suplantar a interior. Ou seja, ao darmos demasiada importância à necessidade de parecer, ao olhar do outro, às expectativa sociais, ao que o outro espera do nosso “sucesso”, aos nossos títulos “de alferes”, corremos o risco da perda de nossa identidade. A alma interior se entrega à nossa vaidade e assim fica-nos uma parte mínima de humanidade. Segundo Bosi, numa analogia entre o espelho e o olhar do outro, “a ausência deste nos impede de ver-nos a nós mesmos como cremos que somos vistos, de tal modo que até o espelho parece perder a capacidade de nos reproduzir com nitidez”. Em suma, o papel desempenhado por cada um de nós, a cobrança dos outros pelo sucesso, o comportamento e o status social não podem ser o espelho de nossa alma, sob pena de o alferes eliminar o homem.

Aliás, o tema do espelho e da perda do nosso reflexo é tão palpitante que Guimarães Rosa, grande escritor da língua brasileira (!), também escreveu um conto com o mesmo título, mas numa outra perspectiva. Nele, um sujeito não nomeado narra sua experiência ao ver a sua imagem refletida no espelho e, assim, inicia um processo de reconhecimento de si, pois a sua imagem não refletia o que idealizara. Tudo se passa num lavatório de edifício público. Ele, moço e vaidoso, ao ver dois espelhos de parede, enxergou uma “figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo”. Aqui, ao contrário do conto de Machado, o espelho deu-lhe náusea, causou susto, ódio, eriçamento e espavor, servindo como meio para um estranhamento de si. A partir desta ideia, Rosa nos fala dos riscos de se olhar muito no espelho:

“Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de uma mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, pré- existente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão”.

O personagem de Rosa, a partir desta ideia, parte numa travessia em busca do seu eu. Ao final, faz uma das grandes indagações da nossa vida: “você chegou a existir?”

O que esses personagens nos mostram é que um espelho nunca nos revela a nossa face real. E que, às vezes, de tanto nos olharmos, nos mirarmos, corremos o risco de nos perder. Isso vale para a nossa conversa da última semana sobre a constante necessidade de nos impor nas redes sociais, de parecer, mas também nos nossos meios sociais, em que a imposição pelo sucesso é uma constante, inclusive no seio familiar. E, em algumas áreas dadas ao poder, porque decidem o destino da vida das pessoas, como é o caso do Direito e da Medicina, somos convidados, a todo momento, a vestir a farda de alferes, seja nas honrarias, nos tratamentos, nas vestimentas e até no olhar do outro. Ao fim e ao cabo, o que Machado e Rosa nos mostram é que tudo isso traz o risco de olharmos no espelho e não nos vermos, de perdermos o verdadeiro eu. Bom, caro leitor, não disse ao final do nosso último encontro que o Bruxo do Cosme Velho teria algo a nos dizer?

Ops. Essa semana ouvi um preocupante discurso de posse de uma importante figura mundial. Ele defendeu a exploração ambiental desmesurada (perfurar, perfurar, perfurar), a política armamentista, o imperialismo, o colonialismo, o anticientífico, a violência, a apropriação de territórios com o uso da força e, de lambuja, ainda menosprezou o Brasil. Diante desse populismo autoritário, assustei-me quando vi muitos do meu meio social batendo palma para toda essa megalomania e preocupante maluquice. Sei, caro leitor, que no espelho essa cara não é minha e nem sua, mas tomo a liberdade de compartilhar a minha inquietação: Em que espelho perdemos a sensibilidade às dores humanas? Em que espelho perdemos a nossa preocupação com as gerações futuras? Em que espelho ficou perdida a nossa capacidade de ver o mal? O filme “O Retrato de Dorian Gray”, baseado no romance de mesmo nome, de Oscar Wilde, pode ter algo a nos dizer.

Ops. O quadro que abre esta coluna se chama “As Meninas” (Las Meninas), pintado pelo artista espanhol Diego Velázquez (1599-1660). A obra fala de espelho, ilusão e realidade. Não nos iludamos com discursos autoritários, “a cadela do fascismo está sempre no cio.” (Bertold Brecht).

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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
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