É preciso muito cuidado para viver, afinal há vários perigos e vírus circulando por aí. Passadas as agruras do coronavírus, estamos diante da pandemia dos coachs (tinha mesmo que ser um nome em inglês), termo originário do verbo “coax”, que significa persuadir ou aliciar e traduzido em português como “treinador”, uma espécie de guru da vida pessoal e até espiritual, capaz de levar o “cliente” a um sucesso instantâneo.
O coach é alguém que se diz capaz de lhe dar dicas de “gestão emocional”, que o farão olhar no espelho e, seguindo alguns conselhos, alcançar seus objetivos, desde trazer a amada de volta, passando pela retomada de seu corpo deixado na juventude até, claro, a conquista de muito dinheiro e sucesso profissional. Partindo da premissa individualista da autoafirmação, de que “tudo depende de mim”, “eu sou aquilo que quero”, “querer é poder”, ele faz tudo parecer possível com um pensamento positivo. E, se o querer não der certo, a culpa é do pensamento fraco do seguidor. Numa prosperidade barata, ele lhe promete e vende um sucesso instantâneo. A fim de demonstrar suas aptidões, esses seres normalmente se valem das redes sociais (sempre elas!), onde se apresentam bem alinhados, geralmente com roupas ajustadas ao corpo, botox em dia e dentes branqueados pela resina, afinal, há que se mostrar o sorriso constante. Ali ele ostenta o sonho de parte dos “novos ricos”, voltados para a cultura materialista: carro importado, roupas caras, casa moderna com uma bela piscina, vinhos caros e uma família bem perfeitinha e feliz, além de tradicional, óbvio.
Assim, os “clientes”, alimentados pelo desejo de realização do ego, aos milhares, se veem seduzidos pelo elixir do sucesso financeiro e aptos a serem sugados pelo empreendedorismo de palco. Nesse espaço, valendo-se de um discurso bem motivacional, microfones modernos e muitos slides no telão, o coach, tão abnegado – afinal, deixou seus “negócios” altamente lucrativos para ajudar você! – já está a postos para passar as lições.
Veja que curioso, caro leitor. O sujeito, que acorda, passa o dia e dorme consigo mesmo há décadas, se conhece menos do que o coach, este ser capaz de lhe dar conselhos em meio a multidões. Talvez por isso alguns até se autodenominem “especialistas em pessoas”. Fico a pensar se esta ideia não teria um efeito desmotivacional, afinal, ele, um agente revelador das suas potencialidades, está lhe dizendo da sua incapacidade de gerenciar a própria vida. E o mais interessante, os conselhos valem para você e todos os que pagaram por aquelas lições. Vejam que o fracasso é no atacado...
Isto sem falar nas lições de negócios, muitas vezes dadas por quem nunca empreendeu de verdade, ou melhor, está empreendendo como os falsos alquimistas da Idade Média que prometiam transformar chumbo em ouro, na conhecida música de Raul Seixas “Ouro de tolo”.
A origem deste vírus está nos primeiros livros de autoajuda, lançados no início do século 20. Um dos exemplos mais famosos é “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, lançado na década de trinta pelo norte-americano Dale Carnegie. Desde então, muito do mesmo foi produzido, basta que o leitor esteja atento a qualquer vitrine de livrarias de aeroportos. Elas são dominadas por palavras de incentivo: “seja foda”, “10 lições para se enriquecer”, “dicas para acelerar sua carreira”, e por aí vai. Falta criatividade até nos títulos e sobra apelação. Ao fim e ao cabo, tudo se reduz à política do incentivo ao enriquecimento.
Como estes seres invadiram o espaço da saúde mental, em substituição aos médicos, psicólogos e psicanalistas, não seria diferente com o Direito que, convenhamos, é um prato cheio para qualquer novidade, sobretudo quando sem cientificidade. E o pior, muitas vezes com “lições” proferidas por servidores públicos, os quais teriam a fórmula do sucesso para a aprovação no tão almejado cargo público. Tal disparate levou o Conselho Nacional de Justiça – ao editar a resolução 226/2016, dispondo sobre o exercício de atividades do magistério pelos integrantes da magistratura nacional – a proibir a prática das atividades de coaching, similares e congêneres.
Raquel de Queiroz, no texto “Nada é Sagrado” (1959), já anunciava um protótipo desses seres, ao retratar uma carta recebida de uma moça, “cheia de candura juvenil”, que havia encontrado seu “escritor predileto”, uma espécie de coach da década de 60. Ele era “alguém diferente”, “marcado pelos deuses, com direitos mais amplos”. Era alguém que exibia tudo o que podia, tudo era “assunto, notícia, tema de história, material de trabalho”. Ele, por isso, dizia que era “sincero e as gentes, os leitores, lhe batem palmas pela sinceridade”. Nada mais parecido com o que acontece nestes palcos do empreendedorismo, em que os coachs levam as próprias famílias, todos sorridentes para, após confidências, receberem aplausos efusivos. Ele “alega que o público quer ver tudo e saber tudo”.
E tais confidências têm de estar presente também nas redes sociais, onde o “cliente” é capturado. Assim como o escritor predileto, o coach “mostra-se a qualquer hora do dia ou da noite, dormindo e acordando, rezando, chorando, comendo – até na hora do amor, até na hora do parto”. E para que tudo isso? Ora, Raquel de Queiroz sabia bem:
“Vai para um altar, para ouvidos de amigo, para um coração confidente? Não, queridos, vai para um balcão. Vai ser vendido, feito papel impresso – jornal, revista, livro, bilhete de teatro”.
Espero que tudo isso não tarde a achar quem não compre. Aliás, outro dia, compartilhava com o leitor amigo minhas saudades da “candura das chuvas” que nos tinham abandonado, “para nos advertir de quanto precisamos delas”. Com a sua chegada, em outubro, e toda essa conversa de coach, lembrei-me da bonita crônica de Antônio Maria, talvez um anti-coach por dizer que “a liberdade completa é não querer e não poder”. O cronista, infelizmente falecido precocemente, nos lembra da simplicidade do essencial e que talvez essa seja a única forma de encontrar a paz e não esta busca a todo custo por um pseudo sucesso, vendida por especialistas em falsear felicidade nas redes sociais, numa tentativa de imposição social. Diz o nosso poeta:
“Faz-me bem esta chuva... Quero comunicar a sei lá quem que estou bem e que este bem, que me vai por dentro e me veste o corpo, deve estar com alguns de vocês, que preferem a chuva ao êxito; a chuva ao poder; a chuva ao dinheiro; a chuva à sociedade; a chuva ao smoking. Tenho chuva e amor. Uma coisa e outra são prazeres que embevecem. As duas coisas se completam, em nós... e o homem aquiescente aceita a paz, afinal, como o único bem da terra”.
Ops. Tenho ficado impressionado com a inserção dos Coachs na política e em algumas Igrejas, as quais fazem das conquistas materiais o ponto central da espiritualidade. Mais não direi: a aversão está posta: é bom preservar algumas relações, embora meu silêncio esteja carregado de significados.