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‘Tout Va Très Bien, madame la marquise’?

Nosso silêncio diante de algumas cenas remetem a uma cantiga popular de 1936, escrita por Paul Misarki e interpretada pelo francês Ray Ventura

Às vésperas do segundo turno das eleições na França, sugiram pelas ruas do país, inclusive em escolas, cartazes divulgados pelo “Parti de la France” com um jovem loiro, branco e de olhos azuis, seguido do slogan: “Vamos dar um futuro às crianças brancas”.

Na mesma semana, durante a Eurocopa, o zagueiro turco Merih Demiral, após fazer um gol, fez um sinal com as duas mãos em alusão ao grupo nacionalista ligado à organização Ülkü Ocaklari, conhecida como “Lobos Cinzentos”. O grupo, responsável por ações supremacistas na Turquia, é ultranacionalista, antissemita e racista, tendo como principal característica a hostilidade a judeus, curdos, armênios e cristãos. Dentre seus membros, estava Mehmet Ali Ağca, o responsável pelo atentado ao Papa João Paulo II, em 1981.

Alguns dias depois, após a vitória na Copa América, alguns jogadores da seleção Argentina filmaram e divulgaram nas redes sociais um vídeo em que entoavam cantos racistas e transfóbicos. A música zombava da nacionalidade do país dos jogadores franceses, em especial os originários do continente africano, além de ofensas a um suposto relacionamento de Kylian Mbappé com uma modelo transexual.

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Como se não bastasse, já durante os jogos olímpicos, o volante argentino Enzo Fernández, diante das câmeras de uma emissora de TV argentina, utilizou a música novamente para provocar a seleção francesa, já que as seleções se enfrentariam na Olimpíada. O canal argentino de TV 9 divulgou a chamada para a partida apresentando uma parte do vídeo produzido, durante a Copa América.

Na Espanha, ofensas racistas a jogadores de futebol tornaram-se cotidianas, uma das vítimas é o brasileiro Vinicius Júnior. Desde que estreou pelo Real Madrid, o preconceito em razão da cor de sua pele e origem é frequente, razão pela qual é uma das principais vozes contra o racismo no esporte. Em um jogo contra o Atlético de Madrid, a torcida divulgou cartazes, por toda a cidade, em que um boneco vestido com a já lendária camisa 20 do atleta, apresenta-se enforcado num viaduto, demonstrando os resquícios do fascismo de Franco e Salazar.

Esses acontecimentos, que se intensificaram nos últimos tempos, revelam-nos o crescimento da intolerância no mundo, normalmente em razão de gênero, sexo, religião e raça, inclusive incentivados por alguns partidos e lideranças políticas. E o pior, angariando cada vez mais adeptos, muitas vezes pessoas próximas a nós.

Nosso silêncio diante de cenas como essas me remetem a uma cantiga popular de 1936, escrita por Paul Misarki e interpretada pelo francês Ray Ventura. A música se chama “Tout va três bien, madame la marquise” (“Tudo vai bem, madame la Marquise”). Segundo a canção, madame la Marquise ausenta-se de sua cidade, mais exatamente de seu castelo, por quinze dias. Ela então solicita ao seu criado, James, que a mantivesse informada quanto aos acontecimentos em sua morada, principalmente sobre “o que ela iria encontrar no seu retorno”.

Durante seu afastamento, um incêndio tomou conta de seu castelo, devastou os estábulos e matou a sua égua favorita. Além disso, seu marido se suicidou. Ela, sem saber de nada, telefonava constantemente para James, a fim de saber se tudo ia bem. A resposta do encarregado era sempre a mesma: “tout va três bien, madame la marquise”. Ou seja, estava tudo muito bem, salvo problemas pequenos, sem importância, não havendo razões para qualquer preocupação.

Essa canção foi muito utilizada nos meses que antecederam os primeiros ataques nazistas, a fim de denunciar aquilo que a França da época fingia não perceber: os constantes indícios de uma tragédia já anunciada que se aproximava de ações cada vez mais concretas.

A nossa Constituição Federal, em seu artigo 4º, impõe, como um dos princípios da República Federativa do Brasil, o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”, prática que, segundo o artigo 5º, “constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Portanto, cabe a todos nós o dever de denunciar essas práticas para que não se tornem ainda mais corriqueiras.

Aliás, nestes tempos de jogos olímpicos, talvez seja oportuno relembrar histórias magníficas de repúdio a qualquer forma de preconceito. Vamos a duas delas!

Em 1936, em Berlim, capital da Alemanha, Adolf Hitler pretendia realizar o maior evento esportivo do mundo e difundir sua ideologia política fundamentada na falsa ideia de supremacia branca. Eram os primeiros jogos a serem transmitidos pela televisão. Dois dias após a cerimônia de abertura, um jovem negro de 22 anos, Jesse Owens, venceu os 100 metros rasos, prova considerada a mais importante da competição.

No dia seguinte, esse mesmo atleta derrotou o favorito alemão, Luz Long, vencendo o salto em distância e estabelecendo novo recorde mundial. Em seguida, venceu também a prova dos 200 metros rasos. Por fim, liderou a equipe vencedora do revezamento 4×100 metros. Para desespero de Hitler e seus asseclas, os quais viravam as costas em cada conquista do jovem negro, ele foi aplaudido de pé em pleno Estádio Olímpico de Berlim. Ao retornar aos Estados Unidos, Jesse Owens foi recebido em Nova York com carreata a céu aberto.

Entretanto, ao chegar ao Hotel, foi obrigado a entrar pela porta dos fundos e a utilizar o elevador de serviço. Ao saber que o então Presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, prestara homenagem aos atletas brancos, Owens afirmou: “Não fui convidado para apertar a mão de Hitler, mas também não fui convidado para ir à Casa Branca para apertar a mão do presidente. Na verdade, foi Roosevelt quem me ignorou; nem mesmo um telegrama foi enviado”.

Já em outro contexto, mas numa época de forte segregação racial, em 1968, no México, os americanos Tommie Smith e John Carlos, respectivamente, medalha de ouro e bronze na prova dos 200 metros rasos, subiram ao pódio olímpico descalços, a fim de simbolizar a pobreza do povo negro americano. No momento do recebimento da medalha, abaixaram a cabeça e, com luvas negras e punhos cerrados, fizeram a saudação Black Power, a fim de denunciar o racismo e a discriminação. O segundo colocado, o australiano Peter Norman, usou no pódio um distintivo em apoio à causa. Após este fato, os dois americanos foram vítimas de forte recriminação pelo ato, sendo excluídos da Vila Olímpica e da disputa no revezamento 4x100, pois, segundo a regra 50 da chamada Carta Olímpica, “não é permitida em qualquer instalação olímpica qualquer forma de manifestação ou de propaganda política, religiosa e social”.

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Nestas olimpíadas, para nossa alegria, atletas como Rebeca Andrade e Bia Souza, nos dão exemplos de força e luta contra qualquer forma de repressão, como bem sintetizou Daiane dos Santos: “A gente tem que lembrar da importância da pessoa preta para o esporte no Brasil. A gente teve a nossa Rebeca, a nossa Bia com medalha de ouro em um momento que a gente vive tantos ataques de preconceito racial. E hoje a gente tem esse brinde”.

Esses atletas, assim como tantos outros, muito mais que honrarias, lograram uma comunicação que é a mais elevada que alguém pode desejar: a da posteridade. E, através de seus gestos, fazem-nos refletir sobre a necessidade de permanente vigilância e repúdio a qualquer forma de preconceito. Graças a eles, em tempos bicudos como os que vivemos hoje, é importante considerarmos a provocante frase dirigida ao leitor e que abre esse texto, para concluirmos que tudo não vai bem.

Ops. Há 44 anos, na Argentina, um mineiro de Ponte Nova, chamado Reinaldo, na Copa do Mundo de futebol, comemorava gols com o punho cerrado, inspirado no movimento dos “Panteras Negras” contra o regime militar vivenciado no Brasil. Nem preciso dizer em qual time ele jogava.

Ops. Há 3 (três) anos, assistíamos à abertura das Olimpíadas de Tóquio, em plena pandemia. Arquibancadas vazias e a mensagem escrita no gramado: “Estamos separados, mas não sozinhos”. Agora, em Paris, é hora de celebrar o reencontro. Ufa!


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Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.