Uma professora bacharel em Ciência da Computação, uma aluna com deficiência visual e uma ideia. Esses foram os ingredientes para a criação de Lysa, uma cadela-guia robô, pela brasileira Neide Sellin. A tecnologia é pioneira no mundo: antes, havia apenas estudos acadêmicos sobre um dispositivo como esse.
Leia mais:
Cientistas da USP programam robôs para interagirem com idosos
Robôs como Haroldo, de ‘Travessia’, podem substituir humanos?
O desenvolvimento do primeiro protótipo começou em 2011, quando Neide atuava na Escola Municipal Clóvis Borges Miguel, em Serra (ES), como professora de robótica educacional. “Fazíamos robôs de campeonato, que, entre outros desafios, detectavam obstáculos. Um aluno sugeriu que fizéssemos um cão-robô e eu pensei em como aquilo poderia melhorar a vida das pessoas. Aí veio a ideia do cão-guia robô.”
Ela, então, começou a pensar em quais dificuldades a aluna com deficiência visual enfrentava para chegar à unidade escolar e se movimentar por seus espaços. “Conversei com ela e perguntei o que ela acharia de ter um robô com uma alça. Ela adorou!”, lembra. “Fizemos o dispositivo e ela testou.”
Para obter mais impressões, Neide expandiu a pesquisa: convidou mais 20 pessoas com deficiência visual para testar o equipamento. “Fiquei chocada com as dificuldades que eles enfrentam na mobilidade urbana. Os objetos aéreos, aqueles que ficam acima da linha da cintura, por exemplo, são um grande desafio”, conta.
Depois de ver a Lysa, muitos dos participantes da pesquisa se interessaram em ter uma. “Eles criaram uma expectativa de compra, mas eu não tinha para vender. Era um projeto feito com componentes alternativos de forma muito artesanal.” Esse protótipo inicial havia sido construído com sucata e outros materiais.
Neide, então, decidiu abrir uma startup para produzir a Lysa. Ela buscou recursos em fontes como Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Esses investimentos ainda mantêm o projeto.
Com o capital, foi possível avançar no desenvolvimento e adaptar o design para permitir inovações e potencializar a eficiência. Em 2014, Neide registrou a Vixsystem — que ela começou sozinha e atualmente tem uma equipe de 20 profissionais.
A inventora criou uma plataforma robótica com inteligência artificial para garantir navegação autônoma e um aplicativo ligado a uma malha de sensores que detecta objetos aéreos, obstáculos e profundidade. Ele ainda informa se há itens à frente, o que ajuda a evitar colisões, enquanto cria uma rota segura. A primeira versão da Lysa foi lançada, então, em 2017.
Depois, Neide esteve no programa Shark Tank e obteve R$ 200 mil de investimento-anjo para fabricar mais unidades da Lysa. “Eles ajudaram a selecionar fornecedores e a desenvolver o projeto de forma que ele se tornasse um produto industrial e escalável”, lembra. Atualmente, ela recebe aconselhamento dos investidores em relação ao relacionamento com o mercado.
Como é a Lysa
Com peso entre 2,5 kg e 3 kg, Lysa tem câmeras, malha de sensores, navegação GPS e bateria de oito horas. Seu nome não é aleatório: além de ser feminino e curto, foi usado por Steve Jobs para nomear o primeiro Macintosh e a própria filha.
Lysa tem versões indoor (adequada para ambientes fechados e totalmente feita no Brasil) e outdoor (para uso fora de casa, como em ruas e ambientes abertos). “A pessoa com deficiência quer ir para a rua. O dispositivo que criamos é perfeito para ambientes fechados, mas para o espaço externo, tivemos de buscar algo que se adaptasse às calçadas brasileiras — quando elas existem, pode haver desníveis, buracos e outro obstáculos”, conta a inventora.
Para essa opção, a empresa escolheu um equipamento chinês — inspirado nos cães-robô robustos da Boston Dynamics — para embarcar a tecnologia de navegação e usabilidade da Lysa. “A gente importou uma unidade da Xiaomi e inseriu a tecnologia brasileira”, explica Neide. “Ele vem preparado para receber a tecnologia: chega como um computador sem sistema operacional. Embarcamos tudo o que precisamos e ele até já fala português.”
A Lysa outdoor agora passa por testes e deve estar à venda nos próximos seis meses. “O robô está sendo treinado por especialistas do Instituto Magnus”, destaca. A entidade é um centro de treinamento de cães-guia, um dos poucos capacitados para a formação na América Latina. “São eles que fazem a validação e a homologação do sistema do ponto de vista de usabilidade. São os mesmos protocolos usados com os cães-guia e validados há mais de 80 anos.”
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que há cerca de 10 milhões de pessoas com deficiência visual no Brasil — 7 milhões com graus severos. Já os cães-guias em atividade no país são cerca de 150, de acordo com dados do Instituto Magnus. Os animais são treinados por dois anos para ter condição de atender um deficiente visual.
A lista de espera para obter um deles tem mais de 700 interessados — em cinco anos, foram doados 70 cães. O treinamento de cada animal custa, em média, R$ 60 mil ao instituto — que é uma entidade de assistência social, sem fins lucrativos e que funciona a partir de doações. Para obter um cão-guia, é preciso se inscrever nos programas da organização e atender aos critérios de seleção.
Qual o preço da Lysa?
Já para ter uma cadela-guia robô, o preço começa em R$ 24.900, que podem ser financiados, para o modelo indoor. A opção para uso externo pode custar de R$ 40 mil a R$ 80 mil, mas Neide busca alternativas. “Queremos oferecer a locação, para reduzir esse custo. Além disso, há a expectativa de obter subsídios para baixar pela metade e com escala decrescente. Ainda não sabemos o valor, mas acreditamos em R$ 1.500 a R$ 2 mil para a locação mensal.”
Neide busca incentivos fiscais para tornar o serviço o mais barato possível. “Meu sonho é que o preço do aluguel da Lysa chegue a R$ 300, que é o custo mensal de ração para um golden retriever ou um labrador”, comenta. Depois, Neide quer vender a Lysa em mercados internacionais. “Há muitos países adeptos de tecnologias assistivas.”
O modelo indoor já está em uso em alguns locais. “No Hospital Albert Einstein, tem um funcionário que usa”, conta Neide. Outro local que adota a Lysa é o Instituto Magnus. E ela está presente, ainda, nos aeroportos de Vitória e Florianópolis. Os dispositivos pertencem aos estabelecimentos e podem ser usados por deficientes visuais que visitam os locais.
Além disso, a tecnologia foi incorporada pela EEEM Prof. Renato José da Costa Pacheco, de Vitória (ES). A unidade de ensino foi a primeira no Brasil a possibilitar que alunos com deficiência visual circulassem em suas dependências com mais autonomia. Outras duas escolas na capital paulista passam pelo processo de implantação do sistema.
Quem adquire o robô recebe, além do dispositivo, o mapeamento do local para que a experiência do usuário seja a melhor possível. A Lysa integra várias tecnologias para calcular o melhor trajeto para o usuário a partir de ferramentas de navegação, como o Google Maps.
O projeto venceu a edição 2021 do Prêmio Fundación Mapfre de Inovação Social na categoria de prevenção e mobilidade. No mesmo ano, foi citado no TOP 12 Global de Startups no “Slingshot 2021”, do governo de Singapura, e ficou entre os três melhores na categoria “Cidades Inteligentes” após concorrer com iniciativas de 5 mil startups de todo o mundo. Ao todo, a criação acumula 11 prêmios, nacionais e internacionais.
Em 2018, Neide recebeu o prêmio Cartier Women’s Initiative, que homenageia mulheres empreendedoras do mundo todo. Em 2022, foi convidada a participar da celebração de 20 anos da honraria.
No decorrer desta semana, entre 6 e 10 de março, você encontra outras histórias de mulheres brasileiras que atuam de forma inovadora no segmento de tecnologia aqui no Itatiaia Tecnologia. Acompanhe todas elas: a terça-feira (7) apresentou a investigadora de golpistas, a quarta-feira (8) trouxe a pesquisadora que ajudou a criar a computação em nuvem, a quinta-feira (9) revelou a pesquisa da psiquiatra que demonstrou que as notificações de apps viciam e a sexta-feira (10) mostrou a engenheira que transformou um Fusca 1972 em carro elétrico.