Do gesto íntimo de guardar memórias nasceu um filme: Lançado no Mês Nacional da Pessoa Idosa, o documentário dirigido por Júlia Miriam Pires Lage costura vídeos e fotografias feitas nos últimos cinco anos de vida de seus avós, Míriam Araújo de Andrade Lage (1925-2015) e Hernani Guerra Lage (1924-2015), que partiram com apenas seis dias de diferença, em Nova Era, na Região Central de Minas Gerais.
A inspiração surgiu da tentativa de lidar com a perda de memória de Hernani, que, no fim dos anos 2000, já não reconhecia as netas. “Na época, ele estava, aos poucos, perdendo a memória recente (...). Com o intuito de ajudá-lo, fiz para ele um álbum com todas as fotografias em que aparecia nas fotos de família”, contou Júlia.
Então Júlia passou a gravar conversas com o avô, na tentativa de estimular lembranças. “Enquanto fazia o registro, escutei ao fundo a minha avó cantarolando uma de suas canções. (...) Só consegui convencê-la a cantar com o argumento de que suas músicas seriam eternizadas.”
Documentário “Nós queremos uma valsa” é dirigido por Júlia Miriam Pires Lage
Foi daí que surgiu a ideia do nome do filme: ''Nós queremos uma valsa''. O título vem de uma canção favorita de Míriam, que ela cantarolava enquanto fazia serviços domésticos e com a qual convidava a família a dançar. “Durante os cafés da manhã e da tarde em família, aos finais de semana, ela às vezes ensinava o meu tio a dançar valsa, e eles rodopiavam pela copa cantarolando.”
Ao ver as gravações, Júlia percebeu que não se tratava apenas de lembranças pessoais, mas de registros carregados de significados.
“Esse sentimento fez nascer o filme e, aos poucos, fui me constituindo como uma observadora dos costumes dos meus avós em sua rotina diária e também das relações que os rodeavam, como as visitas dos familiares, as celebrações de aniversário e as mesas de café”, explica. As imagens, somadas a fotografias da família, formaram a base da narrativa do documentário.
Trajetória do casal
Segundo Júlia, Míriam Araújo de Andrade Lage foi professora do ensino primário em fazendas de Nova Era e, mais tarde, em escolas da cidade. Já Hernani Guerra Lage começou trabalhando com cerâmica, atuou em empresas de mineração e foi vereador na década de 1990. Júlia não sabe ao certo como as histórias se cruzaram, mas acredita que provavelmente por meio de amigos e familiares em comum. Juntos, tiveram três filhos e cinco netas.
Para ela, registrar a intimidade dos avós também ecoou um gesto do próprio Hernani, que, décadas antes, homenageara a mãe em uma publicação independente. “Percebi que estava repetindo o mesmo gesto do meu avô ao eternizar, dessa vez, as memórias dele e de vovó Mirinha.”
Moradores de Nova Era, no interior de Minas Gerais, são capturados pela neta Júlia em vídeos e fotografias ao longo de seus últimos cinco anos de vida
O desafio foi conter o desejo de registrar mais do que conseguiu. “Alguns momentos eu guardo comigo, como a história que vovó me contou de uns peixinhos de chocolate que ela comia com as primas quando era adolescente. Para mim, a espontaneidade de certos momentos não deveria ser interrompida pelos registros. Então são várias cenas que ficaram só na memória. Aos poucos, fui diminuindo as gravações porque, com o avançar do envelhecimento deles, o mais importante era estar presente e fazer companhia a cada visita que eu fazia a Nova Era”, relata Júlia.
Os dois faleceram com apenas nove dias de diferença: Hernani em 9 de junho de 2015 e Míriam em 15 de junho do mesmo ano. Segundo a família, Hernani morreu em decorrência de pneumonia, agravada por demência vascular e fibrose no fim da vida. Já Míriam também teve pneumonia como causa.
Sessões
O documentário teve pré-estreia em Nova Era nos dias 3 e 4 de outubro. A próxima exibição acontece em Santa Luzia, no dia 14 de outubro, às 20h, no Teatro Municipal, no Centro Histórico.
“A equipe está em contato com parceiros para uma exibição em Belo Horizonte, mas a data ainda não está prevista. O filme também será inscrito em festivais de cinema para ampliar seu público”, adianta Júlia.