“A vontade de viver simplesmente foi embora.” Esse é o desabafo de Maria* — nome fictício —, de 24 anos, que denuncia ter sido vítima de estupro, stalking e ameaça de morte duas vezes pelo mesmo homem que não conhece. Em entrevista à Itatiaia, nessa quarta-feira (11), a jovem relatou que, mesmo após denunciar o primeiro ataque à polícia, o agressor permaneceu em liberdade a perseguindo — o que possibilitou um segundo abuso sexual, ocorrido dois meses depois, em Belo Horizonte.
“Tenho medo o tempo todo. Mesmo quando racionalmente sei que estou segura, meu corpo me sabota. É um medo irracional, como se ele pudesse aparecer atrás de mim a qualquer momento”, contou a jovem, que precisou mudar sua vida enquanto o homem continua nas ruas.
Tudo começou em 31 de março, quando ocorreu o primeiro ataque. Maria conta que recebeu em casa um montador de móveis, identificado como Vinícius, para montar um guarda-roupa, após encontrar um anúncio no Facebook. Ela morava sozinha na capital mineira. “Após a conclusão do serviço, o autor, mediante grave ameaça e uso de arma branca, a conduziu ao quarto e manteve relação sexual não consentida com a vítima”, descreve o boletim de ocorrência que a reportagem teve acesso.
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A vítima procurou o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde recebeu atendimento para casos de violência sexual. Lá, foi feito o registro inicial do depoimento, coleta de material genético e iniciado o protocolo de prevenção contra doenças e gravidez indesejada.
“Após o fato, ele passou a enviar mensagens de cunho íntimo e a procurar a vítima em diferentes locais, inclusive, na sua residência e próximo ao curso onde frequenta”, aponta o documento. Apenas quatro dias depois do estupro, em 4 de abril, o agressor voltou a entrar em contato, já usando outro número. Nas mensagens, afirmava estar próximo à casa da vítima e perguntava se ela tinha “algum outro móvel para montar”.
Em seguida, escreveu: “Estou esperando você aqui na porta” e perguntou: “Você não contou para ninguém, não?”. Mesmo após ser bloqueado, ele continuou a assediá-la: “Você é uma gostos*”.
Onze dias depois, Maria* prestou o primeiro depoimento na Polícia Civil. A partir daí, segundo ela, o agressor passou a segui-la nos locais que frequentava, observando sua rotina e se aproximando em diversas ocasiões. Além disso, ela disse que ele chegou a usar oito números diferentes para tentar retomar o contato.
Imagem do primeiro boletim de ocorrência registrado pela vítima
A Itatiaia teve acesso a capturas de tela de mensagens com ameaças explícitas. No dia 13 de maio, o agressor escreveu: “Você tem 24 horas para retirar a queixa. Está avisada.” No dia seguinte, a ameaça se agravou: “Pois bem, você não retirou a queixa. Essa era sua última chance. Sugiro que tome cuidado daqui em diante. Você vai pagar”.
Imagens mostram as ameaças
Sem alternativas e tomada pelo medo, Maria se mudou de casa, saiu do cursinho e trocou o número de telefone. Mesmo assim, o agressor continuou a persegui-la. Maria tentou tirar a própria vida e passou a fazer acompanhamento no Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam).
Vítima é ameaçada no Centro de BH
Segundo o boletim de ocorrência registrado, em 17 de maio, a vítima recebeu uma ligação com informações falsas sobre o comparecimento a uma delegacia inexistente. Essa seria mais uma tentativa de emboscada de se encontrar com a vítima. Mas, desconfiada, ela conta que desistiu de ir até o local.
No dia 2 de junho, o agressor voltou a se aproximar, desta vez em uma rua movimentada do Centro. Ele a abordou silenciosamente, segurou seu braço, chamou um carro por aplicativo e a levou à força até uma casa — que a vítima acredita ser do próprio criminoso — onde a estuprou novamente e a ameaçou, exigindo que retirasse a denúncia.
Maria* relata a frustração de ter feito tudo após o primeiro estupro — boletim de ocorrência, depoimentos, exames — e, ainda assim, o crime ter se repetido. Mesmo muito abalada e machucada pelas agressões físicas e sexuais, com toda a situação, ela e uma testemunha, na expectativa de que um flagrante pudesse ser feito, se uniram para tentar identificar onde o segundo estupro aconteceu. Por meio do Google Street View, elas encontraram a rua e o número.
Vítima procurou o hospital Júlia Kubitschek, em BH, após segundo abuso
Maria conta que endereço foi repassado à Polícia Civil em menos de 24 horas. “É frustrante saber que eu me esforcei tanto para prestar os depoimentos, que a gente sabe que não é fácil, porque você tem que contar a história várias vezes e ser questionada. Sei que faz parte do protocolo, mas não é fácil. E perceber que nada disso surtiu efeito... É decepcionante.”
Investigação em andamento
Em nota, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) informou que “há procedimentos em andamento apurando crimes sexuais relatados pela vítima.”
As investigações estão sob responsabilidade da Delegacia Especializada de Combate à Violência Sexual em Belo Horizonte. A corporação afirmou que mais informações serão divulgadas assim que os trabalhos forem concluídos. A PC não informou se o homem foi chamado para prestar depoimento.
Diante dos questionamentos da vítima e da condução da Polícia Civil no caso, a Itatiaia conversou com a criminalista Carla Cilene, professora no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec). Ela explica que, apesar da frustração, a condução pode, de fato, ser demorada.
“Situação de flagrante é aquela em que o fato está acontecendo ou logo após. Embora não tenha tido o flagrante, pode ser requerida a prisão preventiva dele. Mas o mais importante e complicado em casos como esse é a vítima imediatamente se dirigir a uma delegacia para ser encaminhada aos exames relativos ao delito (principalmente o DNA) e ao protocolo de saúde. Sem provas, a justiça não pode condenar e, diante do trauma, muitas mulheres só procuram a delegacia quando não há mais vestígios”, afirma.
A Polícia Civil não informou se foi solicitado pedido de prisão preventiva.
“Não existe na lei essa questão de 24 horas para o flagrante. E mesmo que houvesse o flagrante, ele poderia ser relaxado caso o indivíduo seja primário, de bons antecedentes, tenha ocupação lícita e residência fixa. A regra é a liberdade, a prisão é exceção, justificada após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória”, explica a criminalista.
Segundo a especialista, o sistema de justiça criminal tem como função apurar os fatos e aplicar a pena — mas a proteção da vítima vai além disso.
“A proteção da vítima não é atribuição (da justiça criminal), que nem tem instrumentos para tanto. Por isso precisa ser debatido quem ficará com a responsabilidade pela segurança da vítima, pois a segurança pública falhou”, acrescenta.
Suspeito não responde
A Itatiaia ligou para três telefones usados pelo suspeito de estupro — dois deles usados para entrar em contato com a vítima — e também tentou contato pelas redes sociais. As mensagens não foram respondidas.