Ouvindo...

‘Onde assina para ser pai?’ Post de mãe antes de morrer gera debate sobre a sobrecarga da mulher

Daniela Antonini, sua mãe e sua filha foram achadas mortas em apartamento em BH; dificuldades financeiras, especialmente para pagar tratamento da criança, foram citadas por Daniela antes de morrer

Mulher encontrada morta ao lado da mãe e da filha fez desabafo nas redes sociais

'’30 dias vivendo num cubículo com mais oito pessoas, bombas apitando, luz na cara, comida ruim e fria. Dividindo banheiro sujo com mais de 36 leitos... Só com basculante, sem ar condicionado ou ventilador, geladeira, nem uma fruta vem, nem um café... E ainda passando raiva. Onde assina para ser pai ao invés de mãe? Alguém me fala? Jornada 30 x 7 quando há boa vontade.’'

Essa foi a publicação feita por Daniela Antonini, de 42 anos, em 19 de março deste ano. Na legenda da imagem em que ela mostra um leito de hospitalar, Daniela desabafou sobre a sobrecarga como mãe de filha com deficiência. Ela, a mãe (Cristiana Antonini, de 68) e a filha (Giovanna Antonini, 1) foram encontradas mortas em um apartamento no bairro Barro Preto, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, em 9 de abril. Segundo a família, a pequena tinha problema grave de saúde, pois não tinha conexão do esôfago com o estômago.

A Polícia Civil de Minas Gerais está investigando o caso para saber o que levou às mortes, mas, segundo relato de amigos e parentes, Daniela estava passando por problemas de saúde mental. No registro ela apontou que passava por dificuldades financeiras, especialmente para pagar o tratamento de saúde complexo pelo qual a filha tinha que passar.

Leia também

Luta das mulheres

Mães atípicas é o nome dado às mães de crianças cujo desenvolvimento é diferente do esperado para a sua idade, devido a uma deficiência intelectual ou física. As dificuldades relatadas pela Daniela, uma mãe atípica, fazem parte da realidade de muitas mulheres que sentem o peso do cuidado e da falta de apoio estrutural e social.

Adriane Cruz, presidente da Associação Mães que Informam (AMI), conta como o impacto na vida profissional e financeira é comum entre as mães que têm filhos com algum tipo de deficiência.

Adriane, que é mãe de João, um adolescente de 16 anos com paralisia cerebral, precisou deixar o trabalho. Ela conta que precisa estar presente e cuidando de João o tempo todo. Isso inclui até mesmo segurar a mão dele por 40 a 45 minutos a cada três horas para que ele não arranque a sonda de alimentação.

E esse cuidado requer dinheiro. “Mesmo com benefícios como o BPC/LOAS [benefício sócio-assistencial pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) no valor de um salário mínimo mensal concedido ao cidadão que comprove ter uma deficiência de longo prazo], os custos com fraldas e dietas especiais são altíssimos”, explicou. Isso sem contar que a retirada de insumos básicos, muitas vezes, exige entrar na Justiça em um processo burocrático e desgastante.

Adriana, assim com muitas mulheres nessa situação, vivem em função da criança — precisando de abdicar da sua própria vida. Na associação, ela luta por uma vida mais digna para ela e todas essas mães.

''Elas anseiam por serem vistas como mulheres e seres humanos. É muito humilhante, destrutivo e dá vontade, sim, de morrer, porque você não tem dinheiro, porque você não tem dignidade, porque você não tem respeito e, principalmente, porque você não tem a empatia da sociedade”, desabafou.

Saúde mental das mulheres

Camila Rufato Duarte, advogada e cofundadora do Direito Dela, chama atenção para os números alarmantes sobre a saúde mental materna. Segundo ela, 1 em cada 4 mulheres apresentam depressão perinatal; quase 1 a cada 5 enfrentam quadros de ansiedade; no período pós-parto, o risco de suicídio é 70 vezes maior do que na população em geral. “Esse risco, inclusive, já é considerado a principal causa de morte materna direta após o parto”, disse.

Entre tantos medos que compartilham, um é especialmente marcante: o medo de morrer e deixar seus filhos com deficiência desamparados. “Já ouvi relatos sinceros e dolorosos de mães que, diante de um diagnóstico terminal, cogitariam medidas extremas por não saberem o que aconteceria com seus filhos após sua partida”, disse. “Nenhuma mulher deveria ter que se perguntar o que será do seu filho quando ela não estiver mais aqui”, acrescentou.

O que diz a legislação brasileira

Do ponto de vista legal, Camila afirma que temos legislações importantes que representam avanços. A Lei nº 13.370/16 garante, por exemplo, a redução da jornada de trabalho em até 50% para servidores públicos que tenham cônjuge, filho ou dependente com deficiência. “Essa redução não implica em corte de salário nem em necessidade de compensação. E já existe jurisprudência reconhecendo o mesmo direito para quem trabalha com carteira assinada”, explicou.

Além disso, conforme a especialista, destacam-se outras iniciativas relevantes como a Lei do Emprega Mais Mulher, que criou um capítulo específico sobre o apoio à parentalidade na primeira infância; a Lei nº 14.721/23, que garante atendimento psicológico gratuito pelo Sistema Único de Saúde para gestantes e puérperas e tramita o Projeto de Lei nº 1134/24, que propõe o Programa Mães Cuidadoras, voltado para mulheres que cuidam de filhos com deficiência ou doenças raras, com foco em capacitação, geração de renda e empregabilidade.

“Esses avanços legislativos são importantes, mas estão muito distantes da realidade da maioria das mulheres. A maior parte vive em verdadeiro abandono, sem acesso a saúde adequada, sem acolhimento psicológico, sem oportunidades reais de educação ou de inserção no mercado de trabalho”, disse.

Ela ainda pontua a importância dos recortes ao analisar essa ralidade: as mulheres que mais sofrem com esse abandono são, em grande parte, mulheres negras, periféricas, empobrecidas, sem rede de apoio, sem oportunidades.

“Elas acumulam camadas de exclusão que tornam a maternidade ainda mais solitária e desigual. São mulheres que estão nas margens da sociedade, sustentando tudo sozinhas. Mulheres muitas vezes, da chamada geração sanduíche: cuidam dos filhos com deficiência e dos pais idosos ao mesmo tempo, sem qualquer suporte”, finalizou.

Formou-se em jornalismo pela PUC Minas e trabalhou como repórter do caderno de Gerais do jornal Estado de Minas. Na Itatiaia, cobre principalmente Cidades, Brasil e Mundo.