A cidade de Caeté, distante cerca de 50 km de Belo Horizonte, preserva um patrimônio histórico que ajuda a contar a evolução da farmacologia e até a medicina no Brasil: é a Pharmacia Ideal, fundada em 1918 e que guarda preciosidades usadas ao longo de 106 anos. Esse acervo, de valor histórico imensurável, está no Museu da Pharmacia Ideal, reinaugurado recentemente e que tem como idealizador o farmacêutico Antônio Claret Chagas, de 76 anos.
Claret, que atende visitantes com orgulho do legado deixado pela família, é o quarto da geração no comando da Pharmacia Ideal, comprada por Joaquim Francisco de Melo em 1918 por 12 mil contos de réis. A nota da aquisição, inclusive, faz parte do acervo do museu, assim como uma declaração da amputação de um dedo de um trabalhador que se acidentou em uma padaria. O procedimento foi feito pela farmacêutico João Geraldo Chagas, pois, em 1968, a presença de médicos em cidades do interior era rara.
“Herdeiro dessa história toda, guardei com muito carinho todos os apetrechos, desde os livros em francês ao maquinário que usava antigamente. Guardei porque não é só a história da minha família, mas a história da farmacologia e da medicina brasileira. Acredito que o legado dos meus antepassados vai enriquecer muito a cultura e a história da farmacologia”, disse Claret, que descreve como era o atendimento antigamente.
“Em 1918, os farmacêuticos eram os médicos do interior. Eram poucos médicos e eles se fixavam nas capitais. Guardo, com muito carinho, material cirúrgico que meu tio e meu avô usavam para fazer extração de projéteis e drenagem de abscessos. Tenho uma declaração do meu tio amputando o dedo de uma pessoa, porque não tinha médico e nem postos de saúde”, descreve.
Recibo de compra faz parte do acervo do museu
Os registros dos atendimentos não são os únicos que mostram como eram a medicina e a farmacologia no passado. Antônio Claret também guardou, por exemplo, seringas usadas para transfusão de sangue, mala de mascate (usada pelos farmacêuticos para atender urgências), esterilizador de agulhas em ferro fundido, lança perfumes (permitido na época), espátulas de osso e diversos livros. Em um deles está registrado um atendimento feito na Pharmacia Ideal à irmã Benigna, que está em processo de beatificação no Vaticano. Na Pharmacia Ideal, foi manipulado um xarope de codeína, conforme registro no livro de entorpecentes.
Lança perfume eram vendidos em farmácias
Gripe espanhola
Além de guardar objetos únicos e histórico, Claret conta que a casa que virou museu foi transformada em hospital de campanha em 1918 por causa da pandemia de gripe espanhola, que dizimou um quarto da população mundial.
“Joaquim Fernandes de Melo, farmacêutico fundador da Pharmacia Ideal, tirou a família daqui e transformou essa casa em um hospital de campanha. Os tratamentos eram paliativos. Não existia antibiótico e ele usava aquilo que ele tinha à disposição”, lembra.
Dificuldades
Luiz Antônio de Castro Chagas, 47 anos, filho de Claret, mantém a tradição da família. Ele é farmacêutico e está à frente das obras de reformas do espaço.
“O museu foi idealizado pelo meu pai, o farmacêutico António Claret, em 1990. A gente começou expondo uma pequena parte das peças dentro da própria farmácia comercial. Em 2020, a gente decidiu criar a Associação Museu Pharmacia Ideal, que hoje é mantenedora do museu. E a gente decidiu usar a casa, que era da minha avó, para poder ampliar e poder expor todas as peças que a gente tinha”, explica Luiz,
Para viabilizar a reforma da casa, Luiz conseguiu recursos por meio da Lei Aldir Blanc e do projeto Compartilhar, da Vale. Ele destaca que a Pharmacia Ideal mantém o atendimento no mesmo endereço há 106 anos.
“A gente é o comércio mais antigo de Caeté, com certeza. Desde 1918, a Pharmacia Ideal continua funcionando no mesmo prédio e estamos à disposição de toda a população caeteense. Nosso diferencial é que não somos apenas um começo. Temos orgulho de dizer que nós somos um estabelecimento de saúde”, disse.
Racismo
Joaquim Fernandes era negro e casou com Ernestina Melo, que era branca, em uma época em que a luta contra o racismo estava iniciando. Nesse período, Joaquim Fernandes plantou Camélia no quintal da casa. A árvore está no local até hoje.
A Camélia foi símbolo da liberdade e dos abolicionistas brasileiros do século XIX. Isso porque as flores foram levadas do Quilombo do Leblon, no Rio de Janeiro, para ornamentar a cerimônia de assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel em 13 de Maio de 1888. Os abolicionistas usavam flores de Camélia na lapela do paletó como insígnia de sua militância. Para Claret, Joaquim Fernandes de Melo plantou a Camélia no quintal de casa já como ato contra o racismo.
“Quem usava a Camélia na lapela era favorável à libertação dos escravos. Temos um exemplar de Camélia plantado em 1918 pelo Joaquim Fernandes, que era negro e casou com uma mulher branca. Certamente, ele sabia que a Camélia era o símbolo contra o preconceito”, diz .
Museu da Pharmacia Ideal conta a história da farmacologia do Brasil
Relíquia
Geraldo Vitoriano, 67 anos, é secretário da associação que cuida do museu. Ele mora ao lado do imóvel desde 1970. “O museu agrega muito (para a cidade), porque vai proporcionar aos mais antigos e também à juventude a conhecer a história da farmácia do Brasil e, principalmente, conhecimento sobre o que era feito há anos. Hoje temos esse acervo, essa relíquia guardada pelo Claret e que está disponível para todo mundo conhecer”.
Serviço
Endereço: Praça Dr. João Pinheiro - Caeté
Visitação (de graça): todos os dias, mediante agendamento por meio do telefone (31) 3651-1700