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Você trabalha com o que gosta?

O ideal é que o trabalho seja motivador e não provoque adoecimento; o que não significa, todavia, que ele seja o lugar no qual encontraremos o “sentido” da vida

A pergunta: “Você trabalha com o que gosta?” parece simples, mas carrega um potencial de despertar tanto empolgação quanto frustração. A verdade é que, para muitos, a resposta está mais ligada à necessidade do que à paixão. Mas será que isso é realmente um problema?

Sendo bem realista, a maioria de nós responderá que trabalha, não com o que gosta, mas porque “precisa”. Na maior parte dos casos uma profissão não, antes de tudo, sobre “amor”, “vocação”, “propósito”, mas sobre “atividade”, “conveniência”, “pagar boletos”...

E sabe: tem um que de sensatez nisso. O “trabalho” não, necessariamente, tem a ver com “propósito”. É mesmo e está tudo bem! Nem todo mundo dá conta, teve oportunidades e tem interesse de ser empreender de si, ou associar sua profissão a uma vocação, ou deslanchar na sua área.

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O trabalho, em si, não é um “fim”, mas um “meio”. Não se trata de assumir uma visão pessimista do “trabalho”. Essa em que se compreende que trabalhamos por termos sido castigados pelo pecado (Gn 3,19). Aliás, vale lembrar que termo “trabalho” vem de “tripaulim” um instrumento medieval de tortura. Não, o trabalho não precisa, e nem deve ser um instrumento de tortura! O ideal é que ele seja agradável, motivador, que não provoque adoecimento. O que não significa, todavia, que ele seja o lugar no qual encontraremos o “sentido” da vida.

A lógica é um pouco como casamento. Lutamos para poder entrar, e depois ficamos pensando se não vale a pena sair. Nos primeiros meses, a gente quer devolver para sogra com a impressão de que veio com defeito, ou com a genética ruim do seu marido. Assim como numa relação, a gente se cedo ou tarde tem que se desiludir de que é “ele” que completa.

Assim como no casamento, descobrimos que o valor está em aprender apreciar o desconforto, o processo, a inquietude, a falta. É libertador quando, num relacionamento, quase ao ponto de perder o réu primário, a gente dá graças a Deus por não ter se casado com uma “banana”. Funciona mais ou menos assim no trabalho.

Ah, então quer dizer que, tanto no casamento como no trabalho, a gente tem compromisso com a infelicidade? Mas é claro que não. Só quer dizer que a felicidade é sempre o resultado de uma mudança de foco.

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Nos tornamos felizes e realizados, não por “mira”, mas por “consequência”. Se o objetivo de um emprego, casamento, viagem, for fazer “feliz”, nunca vai dar certo. Por mais que possa parecer um paradoxo: o primeiro na intenção é sempre o último na execução. Se a intenção é ser feliz, é preciso, antes, o compromisso consigo mesmo, o senso de dever, as motivações internas, o esforço.... Não dá para ser feliz o tempo todo no trabalho. Isso porque lá tem chefe, gente louca, mal amada; lá tem encarregado! Ser feliz dá trabalho... Como dizia Guimarães Rosa: “felicidade, mesmo, só em raros momentos de distração”.

Há uma série de atividades no mundo, uma série de cargos e funções que estão para além da euforia e do “juízo de gosto”. Não coloque então o sentido de sua vida no que você faz! Ah. Então isso quer dizer que o trabalho precisa “matar” ou que vamos aceitar ambientes tóxicos, com pessoas de personalidade nociva? Claro que não! O trabalho realiza. É lá que fazemos uso da nossa vida, de nossos sonhos e potenciais. É no trabalho que mudamos o mundo. Disso decorre nossa identidade, já que somos, também, aquilo fazemos!! Voltando à metáfora do casamento, não peça ao trabalho, como jamais a uma esposa ou marido, aquilo que eles nunca serão capazes de lhe dar: sensação de plenitude, de colo contínuo, a “razão para a vida”!

Propósito, realização, plenitude são tudo aquilo que a gente realmente precisa para viver. Isso a gente não compra, nem acha na repartição, nem jamais poderá obter dos outros. Maturidade é saber que devemos produzir propósito, realização e felicidade, em nosso íntimo. Encontramos isso olhando para dentro e para cima, “buscando no alto” (Cl 3,1). Saber disso ajuda a sofrer menos, não colocando, além das “horas trabalhadas”, aquilo que não se deve, na “conta dos outros”. O trabalho é muito importante. Todavia, se ele está levando, sozinho, o peso do sentido da vida, significa que algo mais belo e profundo dentro de nós já desidratou...


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Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.