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Inteligência Artificial e Burrice Natural

A inteligência generativa vai assumindo cada vez mais espaço

Padre Samuel Fidelis é colunista da Itatiaia

Estamos todos (para variar) deslumbrados com o desenvolvimento da Inteligência artificial. A confiança na “razão”, em sua capacidade de pavimentar a estrada rumo ao progresso, conferindo sentido à existência humana, tão frustrada na Segunda Guerra, já que a “ciência” criou campos de concentração, para se encontrar agora um novo momento. O conhecimento humano produziu uma nova “quimera": o mundo será melhor, pois as máquinas podem, agora, raciocinar.

A inteligência generativa vai assumindo cada vez mais espaço. Dos trabalhos acadêmicos até os simples recados, tudo passa pelo ChatGpt. Seja em diagnósticos médicos mais precisos, seja na Alexa ligando lâmpadas em casa, seja nas finanças: o mundo já não seria o mesmo sem a I. A.

Para os entusiastas, são os ventos do progresso. Para os pessimistas, isso tende a tirar muitos trabalhos, é uma espécie de “marca da besta” (Ap 13). O fato é: não é possível prescindir desse fenômeno, nem é possível ignorá-lo.

E se impõe uma pergunta? Onde fica o humano, e o natural diante da artificialidade? Bom, desde o ponto de vista bíblico, o ser humano é feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26). Sua vocação é representar o divino e agir como o criador. Isso não no sentido de que o homem seja a expressão do divino, já que Deus para ser Deus não pode ter imagens, ou de que pode agir com domínio absoluto, já que ninguém é onipotente.

Ao dizer de imagem e semelhança se quer indicar que algo da inteligência (da capacidade de interpretar, conectar, transpor) humana, bem como algo da vontade (dessa pulsão transformadora que movimenta em direção a algo) reflete aquilo que o Criador é.

Portanto, lá onde há transformação, criatividade, inovação e arte, se atualiza a ação criadora de Deus. A I.A, se bem usada, potencializa o que o humano de tem mais genuíno, sua inteligência.

O desafio como sempre, está na atuação, no uso, no excesso. A inteligência natural que precede a Artificial não tem o salvo conduto dos algoritmos. Ela traz em si uma dimensão moral, um apelo à responsabilidade, uma dor de existir... À inteligência humana subjaz uma consciência que deve voltar-se sobre si e discernir com bom senso (algo além do cálculo) que: há uma diferença entre o que se quer o que se deve o que se pode.

As máquinas podem ser artificiais. Nós não. Somos naturais, feitos de carne, sangue, limites, sentimentos. Nossas conexões são complexas, nãos mensuráveis, paradoxos apaixonantes. Basta ver como é bom e mais saboroso gostar de quem não presta para ver que um mundo só com I.A poderia falir o sertanejo universitário (que, aliás, nunca se forma).

A tecnologia, em sua “vocação” ao progresso pode, todavia, servir ao regresso. Há riscos de que os algoritmos, em sua “tara” pela polêmica, pela fantasia que entretém e pelo ódio que encanta, deem vazão ao que há de pior em nós. A inteligência Artificial pode prestar um serviço à burrice natural.

É preciso medita nossa relação com a técnica. Sem ressentimento. Façamos com a mesma naturalidade com que a impressora sucedeu ao pergaminho. Não é questão de ser bom ou ruim. “Se é bom ou ruim, só o tempo dirá" (João Grilo).

O desafio imposto é de colocar sobre suspeita motivações, usos e propósitos.

Ninguém tem dúvidas de que a I.A é uma benção e uma graça. Sirva-nos, todavia, a apropriação selvagem de um adágio da teologia clássica: “gratia supponit naturam” (a graça pressupõe a natureza). A I.A é: sem o bom e velho hábito do estudo, que garante repertório, uma repetição de asneiras e amenidades, sem o calor da empatia, um monte de dados que esfria a alma, sem a ética, um álibi para territórios sem lei, sem prudência, uma tragédia anunciada...

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Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.