Ouvindo...

Ser ou não ser?

É precisamente nos momentos em que sentimos algo de “podre no reino da Dinamarca” (Hamlet) que temos ainda mais dúvida sobre quem realmente somos e o que confere sentido à nossa passagem neste mundo

Padre Samuel Fidelis é colunista da Itatiaia

Um dos grandes imperativos do provocador e ácido filósofo Friederich Nietzsche: tornar-se o que se é. Para o pensador, a vida, no seu conflito e impermanência, vive em contínua afirmação de si. A vida para Nietzsche pulsa e nós, seres humanos, somos a parcela de vida que “pulsa consciente”, à procura de si. Para ele, nessa busca por sermos autores de nossa existência, a gente se encontra diante de conflitos, mudanças contínuas de perspectiva, do caos. É preciso ter Caos dentro de si, lembra Nietzsche, para dar à luz uma estrela dançante.

Luz, transformação, impermanência, parto... Seja Nietzsche em seu ferrenho ateísmo, ou Jesus Cristo, em seu anúncio de fé, chegaremos a conclusões parecidas sobre o fato de que a vida é um contínuo “parto”.

Dói ser quem se é. É por isso que boa parte das vezes, as pessoas dissimulam. Elas escondem a dor de “ser”, aquela mais originária, no cargo, nos excessos, no sexo, na religião... É tarefa muito difícil saber de si, sem paranoias, sem jogar a conta no colo da vizinha, sem “culpar os pais por tudo...”.

O desafio é tanto que, para a própria análise, nunca teremos uma noção acabada e exata de quem somos. O “eu” será sempre uma fantasia, um barco à deriva entre os boletos bancários, a festa tão esperada, à beira do abismo do olhar que nos reprova, do desamparo, da dúvida.

É precisamente nos momentos em que sentimos algo de “podre no reino da Dinamarca” (Hamlet) que temos ainda mais dúvida sobre quem realmente somos e o que confere sentido à nossa passagem neste mundo. Faz parte da dor profética e poética de ser saber mais do que se deve e menos do que é preciso. No caminho de “torna-se” o que se é, há o fosso da incerteza: “ser ou não ser, eis a questão?” (Hamlet).

Vem em nosso auxílio à beleza do texto bíblico da libertação do Egito. Ao receber o chamado, Moisés tem grandes dúvidas sobre sua capacidade, sobre em “nome de quem” anuncia, sobre se iria ou não convencer o Faraó.

Moisés aprende a duras penas. Faraós não se convertem são vítimas de si, por isso assassinam os outros. Deus, donde toda vocação recebe chamado, não tem nome próprio, mas só apropriado: é todo poderoso, mas também ternura, “Senhor dos exércitos”, mas também colo de mãe, Ele é “Santo” (separado), também relação, “Deus das frias de que livrei os vossos pais”.

A beleza desse relato bíblico reside precisamente na incapacidade humana, na falência das expectativas, no contraste entre o orgulho do faraó e a fraqueza de Moisés. Lá onde não fores, Moisés, diz o YHWH (Adonai), “ehyeh asher ehyeh” (Eu Sou o que Serei).

O segredo é esse: às vezes, não fazer nada, se permitir o privilégio da inutilidade, não ter o que dizer, nem como dizer, não saber o que fazer é a parte mais difícil, e é tudo...

Há um mistério de “não ser” no mundo, um pouco porque o “mal” que nos circunda é a ausência (ausência de carinho na infância, de afeto verdadeiro que fez a pessoa que nos fere agir como um filho de chocadeira), um pouco porque nem nós sabemos de nós o tudo que é preciso, somos ausentes de nós mesmos, por isso tanta neurose...

Enfim, do ser que “está" em mim e em ti, temos muito de “não ser” de “não saber”. Haja terapia e vodka para ser menos estranho a si... Deus tenha misericórdia de nós, nesse abismo do “não ser”, do “não poder” diante do qual às vezes estamos.

Consola-nos saber que “Ele Será"! Se a vida não trouxer sempre alegria, que ela nos traga a maturidade que surge do tormento. E, sobretudo, nos venha à tranquilidade de saber que uma coisa é o purgatório do “não ser e não saber”, que nos acompanha neste mundo, bem outra é o lugar reservado no inferno para “as mulheres que não se ajudam” (Madeleine Albright), para quem “trai os superiores e os amigos” (Dante) e para quem, como Iago de Otelo, até diz, mas não é o que parece ser...

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Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.