Fim de ano mais violento? Por que os feminicídios aumentam em Minas

Casos recentes chocaram o país e refletem dados da Sejusp que mostram aumento dos registros desde 2021, com pico em 2024 e números ainda altos em 2025

À esquerda, mulher atacada pelo ex-companheiro em Itaúna; à direita, homem dirige carro com a mulher inconsciente no banco do motorista, na MG-050

Um homem que dirigiu um carro com a companheira já morta e forjou um acidente; outro que viajou quilômetros para esperar a ex-mulher sair de casa e a esfaqueou mais de 50 vezes; e uma mulher arrastada por mais de um quilômetro em uma das principais vias da cidade. Casos que chocaram o Brasil, em diferentes regiões do país, mas que têm algo em comum: mulheres atacadas com extrema violência por serem mulheres.

A sensação de que o número desses casos aumentou é real: dados preliminares divulgados pelo Monitor de Feminicídios no Brasil no início da semana indicam 5.582 casos de feminicídios consumados e tentados entre janeiro e outubro de 2025 — o equivalente, em média, de 18 ocorrências por dia no país. Do total, 68,5% foram crimes consumados e 31,5% tentativas, o que evidencia o aumento da violência letal contra mulheres em comparação com o mesmo período do ano passado.

Mesmo diante desses números, ainda há questionamentos sobre a necessidade de uma lei específica. A resposta está na motivação do crime: o feminicídio ocorre quando a mulher é morta por razões de gênero, o que o diferencia de outros homicídios e exige uma resposta legal própria.

“A diferença entre um feminicídio e um homicídio é justamente o motivo. A mulher é vítima porque é mulher. Porque, na condição de mulher, deixou de atender a um desejo masculino — de submissão, de comportamento. Em razão daquilo que se espera dela, como não colocar fim a um relacionamento, por exemplo, o crime acontece”, explicou Isabel Araújo Rodrigues, advogada especialista em violência doméstica e presidente da Comissão da Enfrentamento a Violência contra as Mulheres da Ordem dos Advogados Seção Minas Gerais (OAB/MG).

Isabel, que também é coordenadora da Rede de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres ou Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, chama a atenção para a diferença na forma como o crime é cometido contra as mulheres por serem mulheres. “Em geral, com grande crueldade, com objetivo de desfigurar o rosto da mulher, de deixar marcas aparentes. A brutalidade, a violência física e a maldade são, em geral, muito mais intensas que em outros crimes, inclusive aqueles cometidos contra homens. O uso de fogo, de ácidos, os golpes na face são, infelizmente, muito comuns”, disse.

Mas por que homens matam mulheres?

Muitos casos são justificados como crimes cometidos por ‘'ciúmes’’. No entanto, a advogada alerta que, na verdade, a violência está ligada principalmente à tentativa de manter poder e controle sobre a vida, as escolhas e a liberdade das mulheres.

“Até 1940, a legislação penal brasileira aceitava emoção, paixão ou defesa da honra como justificativas para crimes, inclusive homicídios. Com a mudança do Código Penal, especialmente no artigo 28, essas alegações deixaram de afastar a responsabilidade criminal. No campo civil, até 2002, as mulheres também não tinham plenos direitos e dependiam da autorização de homens para trabalhar, herdar ou firmar contratos, reforçando um papel social de submissão”, disse.

Esse histórico ajuda a explicar por que o ciúme ainda é usado como “justificativa” para a violência: ele funciona como expressão de controle e posse sobre a mulher, ideia sustentada por uma cultura machista que ainda influencia casos de violência doméstica e feminicídio.

“As mudanças nas leis e na sociedade também se refletem na jurisprudência, e hoje está claro que o feminicídio é um crime de ódio, uma violação de direitos humanos, e que o ciúme não serve para justificar a prática de qualquer delito, especialmente, do feminicídio”, acrescentou.

O aumento dos casos no fim de ano

Durante o período de festas e férias, a violência contra as mulheres tende a aumentar, destaca Isabel. “Não é coincidência, mas uma questão de contexto. A convivência prolongada com o agressor, comum no recesso escolar, nas férias coletivas e em festas de família; o aumento do consumo de álcool e outras substâncias, que potencializa comportamentos violentos; as pressões financeiras e emocionais típicas do fim do ano — como matrícula escolar, IPVA, IPTU, presentes e ceia —; e a idealização de um ‘clima familiar perfeito’, que muitas vezes silencia denúncias (‘não vamos estragar o Natal’), contribuem para o aumento dos casos de violência contra mulheres e crianças, outro grupo vulnerável nesse cenário”, disse.

Os primeiros sinais

Isabel ressalta que o assassinato não acontece de forma repentina: a violência começa antes e a agressão física é a etapa final desse processo. “As violências psicológicas são, com certeza, as formas de maior controle e servem de pano de fundo para todas as outras”, disse.

Segundo ela, o controle mental leva muitas mulheres a aceitarem ciúmes, humilhações e ofensas como se não fossem violências, como se não houvesse ali um sinal de desamor. “Não se pode ignorar o controle excessivo, a invasão da intimidade, o isolamento de amigos e familiares e as exigências de comportamentos que não parecem razoáveis ou que colocam a mulher em situações de desconforto, inclusive em práticas sexuais”, afirmou.

Femincídio em Minas

Para Isabela, Minas Gerais é um estado de tradições familiares rígidas, de culturas machistas presentes em seus segmentos, e isso tem reflexo direto nos índices de violência contra as mulheres.

Os dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) indicam um crescimento consistente ao longo dos últimos anos, com destaque para a escalada mais acentuada a partir de 2022. Após 335 registros em 2021, o total subiu para 370 em 2022 e se manteve elevado em 2023, com 354 ocorrências.

Dados mostram casos de feminicídio tentados e consumados em Minas

Em 2024, o estado atingiu o maior número da série, com 416 casos, impulsionado sobretudo pelo aumento das tentativas. Em 2025, mesmo com dados ainda parciais (até outubro), já são 295 registros.

“Aliado a fatores culturais, temos pouco investimento para a proteção das mulheres. A expectativa para 2026 é de, aproximadamente, R$ 7 milhões, o que, para políticas públicas, é um valor baixo. Minas Gerais, apesar disso, não assinou o Pacto Nacional Antifeminicídio, que é um programa federal que conta com aporte orçamentário para as políticas públicas nos Estados e municípios”, acrescentou.

Em apenas uma semana, a Itatiaia noticiou quatro casos de feminicídio e tentativa de feminicídio em Belo Horizonte e na Região Metropolitana. Relembre;

Falta educação

Para ela, há avanços nas políticas públicas, com serviços mais especializados e novas leis, mas ainda faltam ações como mais abrigos, casas de passagem, delegacias especializadas e a ampliação das Cias PVD em todo o estado.

“Sobretudo, faltam as políticas de educação e a implementação do ensino destas normas nas escolas de ensino fundamental e médio. Não há mudança cultural que não passe pela Educação e a violência contra as mulheres, como fenômeno social, precisa ser desconstruída na nossa cultura, de forma urgente”, finalizou a especialista.

A reportagem entrou em contato com o Governo de Minas sobre ações de combate à violência contra a mulher e aguarda um posicionamento.

Formou-se em jornalismo pela PUC Minas e trabalhou como repórter do caderno de Gerais do jornal Estado de Minas. Na Itatiaia, cobre principalmente Cidades, Brasil e Mundo.

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