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‘O Agro Sem Água’: o complexo uso das águas subterrâneas no Norte de Minas

Deliberação Normativa endureceu as regras para uso do recurso com base em estudo que prevê risco de esgotamento; produtores rurais protestam e reivindicam revisão

Estudo disse que volume de água está abaixo do considerado sustentável em diversas partes do Norte do estado, especialmente em áreas concentradas na Bacia do Verde Grande

Quando chove pouco numa região e há tendência ao secamento de córregos e rios, é normal que as pessoas recorram às águas subterrâneas, recursos hídricos que ficam abaixo da superfície da terra. “É o que nos salva na hora da emergência. A água do meu poço é ouro pra mim. Sem ela, eu e minha família teríamos que deixar a roça e irmos tentar a sorte na cidade”, diz Norberto Lopes de Miranda, agricultor familiar do município de Pai Pedro, que é casado com Maria de Fátima e tem dois filhos, de 13 e 15 anos.

Só que uma normativa do Conselho Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais, órgão máximo deliberativo da política de uso da água no estado, tem trazido preocupação e provocado muitos protestos de produtores rurais do norte de Minas, como, por exemplo, o Norberto. O texto restringe o uso de águas subterrâneas em função do risco iminente de esgotamento.

Desde que recebeu essa notícia, o agricultor ouvido pela Itatiaia conta que passou a regrar mais o uso da água do poço e diz que as plantas sentiram. “Elas estão vindo com folhas menores e as cenouras e batatas também diminuíram de tamanho”, disse.

A decisão teve como base um estudo iniciado em 2015 pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), órgão governamental responsável pelos recursos minerais, em parceria com o Igam (Instituto Mineiro de Gestão das Águas). E a principal conclusão é que 75% das águas subterrâneas do Norte e Noroeste de Minas, além do Vale do Jequitinhonha, já foram utilizadas.

“Verificamos que o volume de água está abaixo do considerado sustentável em diversas partes, especialmente em áreas concentradas na Bacia do Verde Grande”, explica o diretor-geral do Igam, Marcelo da Fonseca.

Marcelo: esforço para conhecer a disponibilidade hídrica subterrânea do Estado

O documento culminou na Deliberação Normativa 76 do Conselho Estadual de Recursos Hídricos que define os critérios para a regularização do uso dessas águas no Estado. “Desde então, o IGAM vem discutindo com a sociedade medidas para garantir o equilíbrio do uso de água, sem comprometer a produção e sem esgotar o recurso subterrâneo”, aponta.

Nesse momento, o órgão está construindo o Plano Mineiro de Segurança Hídrica, com o Ministério do Desenvolvimento Regional, para identificar as “áreas prioritárias para a intervenção que garantam segurança hídrica”. E, segundo ele, um outro estudo também está sendo feito. Dessa vez, específico da bacia do Verde Grande, que é um detalhamento do estudo iniciado em 2015 pelo CPRM em parceria com o Igam. “Nosso esforço é para conhecer a disponibilidade hídrica subterrânea do Estado e fazer uma gestão cada vez mais assertiva”, disse o diretor à Itatiaia.

De qualquer forma, ele considera normal que, numa região com baixo índice pluviométrico, a população recorra a essa reserva hídrica com mais frequência. “Justamente por serem subterrâneas, as águas são de difícil controle, diagnóstico e definição de políticas públicas. É uma grande preocupação nossa, dentro do contexto crítico de graves alterações climáticas”, lembra.

Produtores estão em estado de alerta

A restrição, no entanto, é alvo de protestos e contestações. No ano passado, o Sindicato dos Produtores Rurais de Janaúba, a prefeitura do município e a Associação Central dos Fruticultores do Norte de Minas (Abanorte) propuseram a suspensão do artigo 3º da Deliberação. “Impedir o uso de poços artesianos, a partir de estudos feitos há sete anos, é algo que nos causa alerta”, engrossou o coro o presidente da Faemg, Antônio de Salvo, à época. Marcelo reitera que o estudo começou a ser feito em 2015, mas só foi concluído em 2019, abarcando, portanto, anos de seca menos severas.

Para a produtora rural Hilda Loschi, a preocupação com o estudo se justifica porque sem a água de poços artesianos o impacto na vida e produção dos pequenos produtores é muito grande. Eles, simplesmente, não conseguirão manter suas propriedades. “São poços de pequena vazão. Não queremos acabar com a água reservada, mas usá-la de forma racional. O nível dos poços não tem abaixado”, defende.

Diretor do Igam diz que falta aproveitar melhor a tecnologia

Marcelo concorda que o semiárido tem boa disponibilidade hídrica subterrânea, mas falta melhor aproveitamento e cultura de informação e tecnologia. “O que precisamos é ter uma melhor infraestrutura hídrica que garanta o aumento da infiltração e o aumento da disponibilidade em barramentos ou no subsolo. Além disso, é preciso um desenvolvimento tecnológico. Infelizmente, ainda temos uma agricultura muito rudimentar. Falta orientação aos produtores para que escolham culturas que necessitem de menos água e que sejam mais adaptadas à região”.

Ele reforça que as infraestruturas de uso que já estão instaladas nas propriedades não estão proibidas. “Estabelecemos um prazo para que as pessoas regularizem suas situações. Não estão sendo permitidas novas perfurações em algumas áreas até termos o efetivo conhecimento da demanda hídrica da região para construir soluções que equilibrem o uso das águas subterrâneas”.

Projeto Raízes Hídricas pretende ser ‘transformador de posturas’

Mesmo objetivo tem o projeto Raízes Hídricas - iniciativa conjunta de entidades como a própria Faemg, os sindicatos e associações como a Sociedade Rural de Montes Claros e o Comitê de Bacias do Verde Grande - que foi homologado no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) e agora é uma proposta oficial.

Hilda disse que todos os atores envolvidos querem entender qual é o real consumo das águas subterrâneas no Norte de Minas. A ideia é propor o uso da propriedade rural como uma das alternativas de reservação de água, com o preparo e a conservação do solo e da água e a disseminação das barragens e barraginhas. “É algo que realmente pode mudar a realidade hídrica da região porque vamos assumir a responsabilidade de produzir e reservar água”, falou.

Outra prioridade é criar um processo possível de legalização, onde cada um dos atores possa dar sua contribuição: o órgão público vai articular a liberação de multas e sanções. A Emater e as entidades de classe, como os sindicatos rurais, vão ajudar a mobilizar essas pessoas para que se regularizem… “É um projeto transformador de posturas porque vai possibilitar que o órgão competente ouça as pessoas. É a sensibilização do poder público via Seapa e Semad, condição tão necessária para que o problema da restrição hídrica e do cerceamento do desenvolvimento econômico social de uma região inteira, acabe de uma vez por todas”, defende Hilda.

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Maria Teresa Leal é jornalista, pós-graduada em Gestão Estratégica da Comunicação pela PUC Minas. Trabalhou nos jornais ‘Hoje em Dia’ e ‘O Tempo’ e foi analista de comunicação na Federação da Agricultura e Pecuária de MG.