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Joan Kroc, a mulher que doou grande parte da fortuna do fundador do McDonald’s, a ponto de receber o apelido de “Santa Joana dos Arcos Dourados”

Em 2016, foi feito um filme sobre a vida de Ray Kroc, chamado “The Founder”, que em alguns lugares de língua espanhola foi intitulado “Hambre de poder”, mas em outros foi traduzido fielmente como “O Fundador”

McDonalds

Imagine a cena: no final da década de 1960, um iate navega por um rio em Fort Lauderdale, Flórida, Estados Unidos.

Os convidados estão reunidos a bordo para brindar a um casal, Ray e Jane Kroc, que em breve embarcará em um cruzeiro ao redor do mundo para comemorar seu 5º aniversário de casamento.

Viagens, champanhe, caviar, vestidos glamorosos... Ray ficou rico recentemente, muito rico, na verdade.

O negócio que ele levou de um único quiosque de hambúrgueres em San Bernardino, Califórnia, à dominação nacional acaba de entrar na bolsa de valores.

E de repente, no meio da festa, Ray percebe que não quer dar a volta ao mundo com Jane. Ele não quer ser casado com ela.

O que ele quer é recuperar seu amor perdido, Joan, uma mulher com quem ele fugiu para Las Vegas anos antes, mas com quem os planos de casamento não se concretizaram.

Talvez, pensa Ray, já tenha passado tempo suficiente para que Joan lhe dê outra chance.

Então ele liga para seu advogado, diz que quer se divorciar de Jane e que quer que ele mesmo lhe diga imediatamente.

Além disso, que lhe ofereça US$ 3 milhões em dinheiro e sua casa se ela aceitar um acordo rápido.

Com esses detalhes resolvidos, Ray abandonou a festa.

Sua próxima esposa, Joan, sobreviveria a Ray, herdaria quase US$ 500 milhões após a morte do magnata dos hambúrgueres e legaria cerca de US$ 3 bilhões após sua própria morte, em 2003.

Em vida, foi uma das grandes filantropas do século XX e sua generosidade era tão exuberante, embora discreta, que seria apelidada de Santa Joana d’Arc.

Fundador?

Em 2016, foi feito um filme sobre a vida de Ray Kroc, chamado “The Founder”, que em alguns lugares de língua espanhola foi intitulado “Hambre de poder”, mas em outros foi traduzido fielmente como “O Fundador”.

Esse título reacendeu uma discussão de longa data, porque Kroc não foi estritamente o fundador do McDonald’s.

Em 1954, ele tinha 52 anos e era um vendedor ambulante de sucesso de copos descartáveis e batedeiras.

Em suas viagens, conheceu Richard e Maurice McDonald, dois irmãos que administravam uma hamburgueria incomum.

O cardápio era curto e não eram permitidas substituições. Ainda mais surpreendente para a época era que os irmãos exigiam que os clientes estacionassem seus carros e caminhassem até o balcão, em vez de um garçom trazer seu pedido.

Isso significava que eles podiam atender mais clientes, uma aspiração para a qual contribuiu sua abordagem de linha de produção para cozinhar.

Eles projetaram sua cozinha ideal com giz em uma quadra de tênis perto de sua casa: a grelha aqui, a máquina de milkshakes ali e a estação de fritura com batatas de Idaho secas com carinho para obter uma textura crocante perfeita naquele lugar.

Tudo foi otimizado para reduzir o tempo entre o pedido e a refeição. Por isso, chamaram de fast food.

Embora os irmãos McDonald vendessem acordos de franquia, que permitiam usar seu logotipo — os Arcos Dourados —, seu cardápio e seu mascote, eles nunca conseguiram replicar seu sistema em outros lugares.

Essa foi a parte do negócio que Ray Kroc assumiu e transformou o McDonald’s em um fenômeno.

Como escreveu em suas memórias, “Grinding it out” (traduzido como "¡Cómete el mundo!”), ele passava o tempo trabalhando: “O trabalho é a carne do hambúrguer da vida”.

No meio de tudo isso, um dia Ray foi a um restaurante e viu uma linda mulher loira 26 anos mais jovem que ele, tocando piano para os clientes.

Ele era um músico frustrado. Seu pai insistira que ele encontrasse um emprego de verdade.

Ele se apaixonou instantaneamente por Joan Smith.

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Separações e reconciliações

Tanto Ray quanto Joan eram casados.

Quando o marido de Joan, Rowley, abriu uma franquia do McDonald’s, deu a Ray a desculpa perfeita para visitá-la.

E as visitas podiam ser muitas, já que ele era um homem difícil de agradar.

Seus restaurantes tinham que estar impecavelmente limpos e seguir cada edito em uma bíblia de 84 páginas.

No início, não era permitido que mulheres trabalhassem no McDonald’s, caso fossem uma distração. Mais tarde, essa proibição foi revogada, desde que não fossem muito atraentes.

O amor floresceu entre Ray e Joan, mas, depois do fiasco em Las Vegas, ela voltou para os braços de Rowley.

Ray se divorciou de sua primeira esposa, com quem estava casado há quase 40 anos, e dos irmãos McDonald, de quem comprou a empresa com todas as suas marcas registradas e direitos autorais.

Em 1963, casou-se com Jane Dobbins Green, mas os sentimentos de Ray por Joan sempre ofuscaram seu relacionamento.

Até que ele a deixou repentinamente a bordo de um iate na Flórida, cinco anos depois.

Joan aceitou o pedido de casamento de Ray.

Eles se casaram em 1969 na maior casa de Ray, chamada J&R Double Arch Ranch, em homenagem à sua ex-esposa. Mas como o nome dela também começava com ‘J’, eles nem precisaram atualizar a placa.

Joan usava um vestido rosa e seu anel de noivado era um diamante rosa de 11 quilates em forma de coração.

No entanto, nem tudo seria cor-de-rosa.

Ray tinha “um temperamento violento e incontrolável”, segundo os documentos judiciais do pedido de divórcio que Joan apresentou em 1971.

O réu, diziam, “infligiu à demandante danos físicos, violência e lesões”.

A notícia se tornou pública e os jornais noticiaram o sofrimento de Joan “por crueldade mental extrema”.

Mas o casal se reconciliou no início de 1972 e o assunto nunca mais foi tratado.

Problemas humanos

Ray tinha opiniões conservadoras estridentes, então Joan manteve ocultas suas simpatias liberais.

“Não teria sido próprio de uma dama nem apropriado discordar dele em fóruns públicos”, diria mais tarde.

Mas o que ela não podia ocultar completamente eram suas preocupações com o consumo de álcool de seu marido.

Diariamente, ele começava a tomar um uísque chamado Early Times que, como indica seu nome, ele tomava desde tempos primordiais até tempos tardios.

Joan lançou uma campanha de conscientização sobre o alcoolismo chamada Operação Cork, que não só significa “rolha” em inglês, mas que — como ela explicou depois — também é Kroc escrito ao contrário.

“Sei que é um tema pouco glamoroso”, disse em uma entrevista em 1978 ao jornal The New York Times.

Ela explicou que já havia participado de “organizações de caridade que sempre têm gente na fila”, como o Heart Ball (evento de gala em benefício da pesquisa de doenças cardíacas) e o Fundo contra o Câncer.

“Mas quando se trata de alcoolismo, as pessoas sempre estão procurando as portas de saída”, acrescentou.

Ela nunca revelou por que havia escolhido essa causa em particular. Naquela entrevista, assegurou que não era alcoólatra nem tinha familiares próximos ou amigos que fossem.

Entre muitas ações, a Operação Cork produziu dramas de televisão sobre o impacto da bebida na família, convocou conferências de assistentes sociais e médicos que realizaram um trabalho inovador para abordar o problema, incluindo a atualização do currículo das escolas de medicina para que se concentrassem mais na dependência.

“Nosso foco principal está nos familiares dos 10 milhões de alcoólatras do país”, disse Joan.

“Para cada alcoólatra em uma família, quatro ou cinco membros são gravemente afetados. Queremos mostrar a eles o que podem fazer e como podem obter ajuda.”

“Simplesmente não me interessam os negócios”, declarou. “Tenho boa cabeça e sou lógica, mas minha verdadeira preocupação são os problemas humanos.”

Legado filantrópico

Ray Kroc morreu aos 81 anos em 1984 e pode-se dizer que foi então que realmente começou a vida de Joan Kroc.

Ela tinha 55 anos e era a única responsável por uma das grandes fortunas dos Estados Unidos.

E sua intenção era se desfazer dela.

Há duas maneiras de ver sua filantropia: uma é como um tributo a Ray, garantindo que seu nome fosse lembrado, e outra é como uma silenciosa vingança.

Muitas das causas que Joan apoiava teriam horrorizado Ray.

Ela deu ao Partido Democrata a primeira doação de US$ 1 milhão em sua história.

Uma de suas principais causas foi o desarmamento nuclear.

Em 1985, doou US$ 6 milhões para criar “um centro de pesquisa e ensino multidisciplinar sobre as questões cruciais da paz, da justiça e da violência na sociedade contemporânea”.

O Instituto Joan B. Kroc para Estudos Internacionais da Paz em Notre Dame foi criado, em parte graças à sua doação de US$ 69 milhões.

Ela foi uma das primeiras a promover e financiar hospícios e pesquisas sobre a AIDS, e pagou para que um menino com HIV tivesse um tutor especial quando seus colegas de escola se recusavam a sentar ao lado dele.

Ela financiou desde o trabalho pioneiro do autor e acadêmico Norman Cousins sobre o efeito da mente na saúde e na resistência a doenças, até filmes, zoológicos e teatros em dificuldades.

Sua generosidade radical e eufórica, às vezes calculada, e outras, espontânea, provocada por alguma notícia que a irritava ou por pessoas que cruzavam seu caminho com histórias que a comoviam.

Isso não quer dizer que tudo eram obras de caridade.

Joan não levava uma vida ascética.

Usava seu jato particular como se fosse um táxi, para ir com seus amigos a Las Vegas para maratonas de apostas ou para trazer seus animais de estimação, e comprava coisas como um ovo Fabergé com um pequeno elefante dentro por US$ 3 milhões na Christie’s.

Uma vez, prometeu a uma companhia de ópera uma doação de US$ 1 milhão se pudesse pular o espetáculo e ir direto jantar.

Mas, no que diz respeito à caridade, ela fez a maior parte sem querer que seu nome fosse associado.

Quando em 1997 doou anonimamente US$ 15 milhões às vítimas das inundações em Dakota do Norte e Minnesota, só se soube porque um jornalista descobriu que ela era a benfeitora, mas ela se recusou a receber reconhecimento público.

Assim aconteceu em outras ocasiões, quando se descobriu que ela era a fonte das doações.

Ao contrário de Ray, ela nunca escreveu um livro de memórias. Quase tudo o que sabemos sobre ela vem de sua biógrafa, Lisa Napoli, e seu livro “Ray e Joan, o homem que fez a fortuna do McDonald’s e a mulher que doou tudo”.

Napoli compilou uma lista vertiginosa das causas que Joan apoiou, desde o financiamento de uma estátua de uma nuvem em forma de cogumelo até o revezamento da tocha olímpica.

Quando morreu em 2003, Joan legou US$ 1,8 bilhão ao Exército de Salvação, aproximadamente metade de sua fortuna. A transferência bancária não foi realizada inicialmente porque havia muitos zeros.

Os milhões vieram com instruções para cumprir seu desejo: a criação de várias dezenas de centros recreativos de primeira classe em bairros pobres de todo o país.

Outra quantia que se destacou na lista de beneficiários foram os US$ 220 milhões que ela deixou para a NPR, a rede de rádio pública dos EUA, a maior doação de sua história.

Ela não deixou nada para a televisão pública porque eles não retornaram suas ligações.

Talvez não soubessem quem ela era; ela operou virtualmente nas sombras.

Tanto que, quando morreu de câncer cerebral aos 75 anos, seu obituário no The New York Times tinha apenas cinco parágrafos.

Graduado em Jornalismo e Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Atuou como repórter das editorias de Política, Economia e Esportes antes de assumir o cargo de chefe de reportagem do portal da Itatiaia.