Uma nova forma de julgamento nas redes
Viajar sempre foi sinônimo de liberdade, descoberta e prazer. Porém, com o crescimento das redes sociais, da exposição constante e da preocupação global com questões ambientais, surgiu uma nova prática que vem incomodando muitos viajantes: o travel shaming. A expressão, que em tradução livre significa “vergonha de viajar”, representa o ato de criticar alguém por suas escolhas turísticas seja pelo destino, pelo meio de transporte, pelo impacto ambiental ou até pela frequência das viagens. Embora o termo seja relativamente novo, o sentimento que ele provoca é antigo: culpa, insegurança e, muitas vezes, necessidade de justificar o que deveria ser motivo de alegria.
O que é o fenômeno do travel shaming
O peso da aprovação social nas escolhas
A pressão por ser politicamente correto, ecologicamente responsável e financeiramente ético transformou até a decisão de sair de férias em um campo minado. Pessoas que viajam de avião com frequência são acusadas de contribuir para o aquecimento global. Quem vai para destinos muito turísticos é taxado de “superficial”. Quem viaja durante crises políticas ou sanitárias, como na pandemia, sofre ataques por insensibilidade. O julgamento vem em forma de comentários, mensagens diretas ou até indiretas disfarçadas de “opinião”. Nas redes sociais, a linha entre compartilhar experiências e se defender virou cada vez mais tênue.
Travel shaming durante a pandemia
O auge do travel shaming ocorreu entre 2020 e 2022, quando o mundo enfrentava a pandemia de COVID-19. Com fronteiras fechadas, medidas de isolamento e sobrecarga nos sistemas de saúde, viajar passou a ser visto por muitos como ato irresponsável. Celebridades e influenciadores foram duramente criticados por postar fotos em praias paradisíacas enquanto milhões estavam confinados. Mesmo quem respeitava as regras locais e tomava cuidados foi alvo de críticas. Essa fase deixou marcas profundas: muitos ainda sentem receio de publicar viagens por medo da reação alheia.
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Questões ambientais e o “shaming ecológico”
Outro aspecto que alimenta o travel shaming é a preocupação com o meio ambiente. Voos de longa distância, cruzeiros e resorts em áreas de preservação passaram a ser alvos de críticas por parte de ativistas e ambientalistas. Embora a preocupação com o impacto ambiental seja legítima e necessária, o problema está na forma como ela é direcionada: apontar o dedo para indivíduos, sem considerar contextos ou alternativas viáveis, pode gerar desinformação e afastar pessoas do debate real. O foco deveria estar na indústria, nas políticas públicas e nas soluções coletivas não em envergonhar quem tira férias uma vez por ano.
O julgamento financeiro disfarçado de consciência
Há também uma vertente do travel shaming que critica o suposto luxo das viagens. Pessoas são julgadas por gastarem com turismo enquanto outras enfrentam dificuldades econômicas. Frases como “com esse dinheiro dava para ajudar muita gente” surgem nos comentários. Essa visão ignora que o turismo também é motor econômico, gera empregos, movimenta pequenos negócios e, para muitos, é resultado de muito esforço e planejamento. Viajar não é sinônimo de ostentação — muitas vezes, é sinônimo de prioridade pessoal, autoconhecimento ou até terapia.
Travel shaming afeta mais as mulheres
Estudos apontam que mulheres são as maiores vítimas do travel shaming, especialmente quando viajam sozinhas ou para destinos considerados “superficiais”, como praias ou lugares instagramáveis. Existe uma cobrança extra sobre mulheres para que suas decisões de lazer sejam produtivas, intelectuais ou “significativas”. Viajar por prazer é, ainda hoje, um ato político. Mulheres que priorizam a própria liberdade de escolha incomodam mais do que gostariam de admitir. Isso vale tanto para quem posta com frequência quanto para quem apenas compartilha os bastidores de sua experiência.
O medo de postar (e o excesso de justificativa)
Muitos viajantes, hoje, sentem que precisam justificar cada passo: por que foram, com quem, como economizaram, o que aprenderam, qual foi o impacto. Os posts se tornam acompanhados de longas legendas explicativas ou disclaimers. Em vez de celebração, a viagem vira uma defesa. Essa autocensura digital cria um paradoxo: queremos mostrar nossas experiências, mas tememos o julgamento. E isso, aos poucos, corrói a espontaneidade e o prazer de viajar — um dos hábitos mais enriquecedores da vida adulta.
Por que o travel shaming diz mais sobre quem aponta do que quem viaja
Em muitos casos, o travel shaming revela frustrações, invejas ou projeções pessoais. A crítica às escolhas do outro pode ser uma forma de justificar a própria limitação, seja financeira, emocional ou social. Em vez de reconhecer isso, alguns preferem transferir o incômodo em forma de julgamento. É um fenômeno semelhante ao body shaming, ao mom shaming e a tantos outros comportamentos que crescem em ambientes digitais. A internet deu voz a todos — mas nem todo comentário merece atenção.
Como lidar com o julgamento sem deixar de viver
Lidar com travel shaming exige postura firme e consciência tranquila. O primeiro passo é entender que suas escolhas não precisam ser validadas por todos. Se a viagem foi planejada com responsabilidade, dentro das regras locais e com respeito ao outro, não há culpa a ser carregada. Além disso, escolher o que compartilhar — ou não — nas redes sociais também é um ato de autonomia. Você não é obrigado a explicar tudo. Viajar pode e deve continuar sendo um momento de alegria, descanso e reconexão consigo mesmo.
Influenciadores e a responsabilidade da exposição
Quem trabalha com conteúdo de viagem também enfrenta dilemas. É preciso equilibrar transparência, autenticidade e responsabilidade. Mostrar a beleza dos destinos sem esconder os bastidores, alertar sobre impactos, valorizar iniciativas sustentáveis e evitar a ostentação vazia são formas de combater o travel shaming com conteúdo de valor. Criadores de conteúdo têm um papel importante na mudança da narrativa, não se trata de parar de viajar, mas de mostrar que é possível fazer isso com consciência e humanidade.
O futuro do turismo passa pelo respeito às escolhas
À medida que o mundo discute mobilidade sustentável, inclusão e saúde mental, é fundamental que o turismo também evolua. Isso inclui respeitar quem pode e quer viajar. Travel shaming não contribui para um planeta mais justo. Pelo contrário: reforça desigualdades, silencia histórias e transforma prazer em culpa. O debate sobre turismo responsável deve ser baseado em informação, empatia e ações coletivas, não em constrangimento individual. O mundo precisa de mais pontes, não de muros.
O prazer de viajar precisa ser resgatado
Viajar é uma das experiências mais transformadoras que uma pessoa pode viver. Amplia horizontes, quebra preconceitos, fortalece conexões e cria memórias que duram para sempre. Não podemos permitir que o medo do julgamento roube esse prazer. Cada viagem, seja para longe ou para perto, de avião ou de ônibus, de luxo ou de simplicidade, é válida. E ninguém, além de você tem o direito de decidir o que ela deve significar.
Links internos: Veja como o turismo consciente pode transformar comunidades locais e conheça os hábitos saudáveis que ajudam na experiência de viajar com mais leveza.
Link externo: Confira os dados da Organização Mundial do Turismo (OMT) sobre o impacto das viagens e as boas práticas no turismo responsável.