A identidade é relação. Bastaria que alguém nos fizesse uma das perguntas mais simples e mais difíceis - “quem é você?” - e isso se confirmaria. A resposta, viesse ela tímida ou segura, estaria repleta de categorias de vínculos (sou pai, mãe, filho de fulano...), vínculos trabalhistas (sou médica, sou padre, sou pedreiro...). Tão difícil quanto saber quem somos sem dizer o que fazemos, é dizer o que somos senão a partir de nossas relações.
Nessa perspectiva, chama atenção como o próprio YHWH (o Senhor), ao dizer de si, se apresenta como “o Deus de vossos pais”. É o Deus amigo de Abraão (Dn 3, 35). Na relação que Deus estabelece com os patriarcas e as matriarcas, Ele se dá a conhecer. Donde decorre um segundo conceito que tem grande relação com a identidade judaica e, em Jesus - de modo ainda mais denso e profundo - , com a identidade cristã: trata-se da santidade.
Se observarmos bem - seja-nos permitida a ironia - antes de boa parte de protestantes e católicos se unirem contra o “comunismo”, um dos temas pelos quais brigavam entre si era justamente o da “santidade”. Para os católicos, por vezes com alguns “excessos”, os santos são uma mediação afetuosa e necessária para estar mais próximo do céu. Para os protestantes - às vezes até a página três, já que pastores carismáticos também movem multidões - , a experiência de fé dispensa pedágios humanos.
O fato é que, em ambos os lados, o tema da santidade, enquanto parte da identidade cristã, costuma ser compreendido sob pressupostos equivocados. “Santidade”, na perspectiva bíblica, não diz respeito à ausência de pecado, ao ponto de fazer alguém levitar! Santidade não diz respeito, antes de tudo, à retidão moral ou ao mero cumprimento da Lei. Os fariseus eram zelosos da moral, mas apodrecidos pela ganância.
A identidade cristã, que se caracteriza pela santidade, é, antes de tudo, uma categoria de relação. Só se pode ser santo numa relação pessoal, intransferível, afetuosa (Dt 7,8), genuína com o Deus que é Santo.
Em cada momento da vida, é preciso perceber a presença divina em cada detalhe, como é próprio da amizade. Aos amigos amamos não por causa do que são - há amigos cujas qualidades, se fossem de nossos inimigos, acharíamos insuportáveis! A Deus se confia tudo: os versos e os avessos.
É preciso dar ganho de causa - seja-nos permitido dizer - ao protestantismo em seus inícios, quando tensiona o tema dos santos. A venda das indulgências foi, antes de tudo, um escândalo ao Deus que santifica por sua charis (graça), ou seja, sem pedir nada em troca, por puro amor. Todavia, há algo que talvez tenha se perdido na crítica: é preciso se esforçar para que o amor seja resposta. A fé sem obras está morta (Tg 2,16). Crer sem responsabilidade ética é apenas estética.
Uma boa analogia para entender a santidade, enquanto categoria relacional da identidade cristã, é pensar no fogo e na brasa. Afastado do fogo, o carvão não incandesce: é frio, rígido... Junto ao fogo, se abrasa, aquece e se transforma! Assim são os santos e santas. Assim devemos ser nós: que nossa presença abrase o mundo em amor divino!
Pensemos na poesia do Salmo 112, o qual, ecoando a memória do Senhor que permanece para sempre - Ele que é clemente e compassivo -, fala da felicidade que reside em, por causa da proximidade com Deus, tornar-se ele mesmo misericordioso, compassivo, justo:
“Permanece para sempre o bem que fez” (Sl 112,9).
Nestes tempos de amores com prazo de validade e de egoísmos disfarçados, em que tudo se dissolve, é bom - e faz bem - reconciliar-se com essa identidade cristã enquanto relação com Deus e entre nós: a santidade.