Há frases que a gente se acostuma a repetir. Ditos que povoam o imaginário e que se corrompem no uso “bandido” da língua. Uma das expressões meio apócrifas e malditas é: “A democracia está em crise”. Essa afirmação, em disputa nos espectros de direita e esquerda, tem tomado espaço no debate contemporâneo. O problema é que poucas vezes nos perguntamos: quando é que ela não esteve?
Já se encontra no próprio pensamento de Aristóteles uma crítica contundente ao “sistema” democrático. Na perspectiva aristotélica, a democracia é, por sua natureza, corrupta e perigosa. Isso pelo fato de que, naturalmente, os argumentos nas decisões e deliberações públicas tendem a ser reduzidos ao estômago. O que surge como constatação de um problema, uma necessidade, termina refém de interesses particulares. Boas ideias descem e terminam se tornando palanque político.
Pensemos, por exemplo, no âmbito democrático, nos temas relativos à segurança pública. Ninguém tem dúvidas de que, enquanto brasileiros, sentimos na carne o que significa viver num país inseguro. É nosso dever (cívico e cristão) não permitir que debates como esses se reduzam a torcida, adjetivações e lacração nas redes sociais.
Sobram acusações mútuas. Falta a mínima sensatez. E chama atenção, inclusive, quando pessoas com formação superior, pretensamente esclarecidas, caem na espiral de desentendimento. Há, aqui e acolá, dois pesos e duas medidas!
Fala-se, por um lado, da importância de valores e princípios! Da importância da defesa da vida. Há pouco espaço para o mínimo senso do contraditório quando decisões no âmbito público formam compromisso com a morte. Os mesmos que discursam sobre Estado mínimo e a doutrina “liberal” defendem subsídios. Fala-se da lei e da ordem e, basicamente, na mesma frase, defende-se o que, sob o pressuposto da ordem, atravessa com violência a Lei…
Não! Diríamos. A Lei não existe para proteger quem está errado ou certo. A Lei existe porque há imperfeições até entre os anjos (Jó 4,18). Seguindo a doutrina clássica do Direito, podemos dizer que é precisamente diante do limite - quando até um criminoso deve ser julgado com isonomia, imparcialidade e direito à ampla defesa - que a lei é tensionada a cumprir sua finalidade. O Direito é bom ao preservar o bem jurídico até de quem está errado!
E do outro lado? O amor infalível aos pobres e às árvores, desde que isso não incida em privilégios de casta. Gritam-se pelos cantos ideias abstratas e confusas que insultam o Brasil profundo (não o dos apartamentos de luxo), mas o da dona de casa, da classe operária. Isso para não dizer da certeza catedrática sobre os limites da liberdade de expressão, ou da certeza de que há comentários que necessariamente conduzem a efeitos. Sem, é claro, dizer quem serão os guardiões do que se pressupõe certo ou errado, correndo o risco de tutelar as mentes do povo sob o pressuposto de que há ideias proibidas e que necessariamente produzem esta ou aquela consequência.
A democracia está em crise? Não saberíamos dizer. Talvez ela seja, em si, uma crise, uma angústia, uma tensão contínua. Diferentemente de outros regimes, o democrático pressupõe a civilização dos muitos dissensos.
Há mais perguntas (e certo desespero dos limites intelectuais ou da má vontade mesmo!) do que respostas…
Nossa coluna da semana é mais que uma crítica. Não é nem um conselho, porque quem julgasse saber realmente o que é democracia ou a vida, ao publicar o livro, deveria colocá-lo entre a seção de ficção científica ou de autoajuda!
Trata-se de um senso de indignação, acompanhado de palpites. Se algo lhe fere per se “na direita” ou “na esquerda”, a ponto de perder o raciocínio ou o ar, está na hora de uma boa terapia. A indignação, para ser justa e santa, precisa ser pontual, lúcida, razoável e pragmática… Se esse ódio então se dirigir a uma pessoa em específico: ah… certamente há um amor secreto na alma. Costumamos punir nos políticos aquilo que se ressente dentro de nós.
“Não se deve abandonar bandeiras certas por estarem em mãos erradas” (Dom Hélder Câmara). Boa parte das confusões começa por uma enorme incapacidade de perceber as dores do outro lado, numa resistência a fazer “acomodações pragmáticas”.
E, por fim, pelo amor de Deus: gente em paz com as próprias convicções não enche o saco! Não precisamos transformar a luta pela democracia, pelos direitos, pela justiça nem num cálice de ódio, nem num debate chato...