Preencher a página em branco é a peleja diária de quem escreve. Há uma imagem sobre a escrita muito comum e incorreta: a do escritor talentoso e inspirado que transforma pensamentos em textos atraentes com facilidade. O processo literário, na verdade, envolve muito mais tentativa e erro, reescrita incansável de rascunhos e desespero diante da tela em branco do que normalmente se imagina.
Neste 25 de julho, lembrado como Dia Nacional do Escritor, autores mineiros explicam como lidar com a tarefa sofrida e prazerosa de contar uma história. A Itatiaia conversou com Carlos Herculano Lopes e Luis Giffoni, integrantes da Academia Mineira de Letras, e com Marcela Dantés, uma das vozes de destaque entre jovens escritores de Minas.
Confira:
Carlos Herculano Lopes
O ato de escrever, ao contrário do que muitos possam pensar, não é uma tarefa fácil. Mas exige, de quem a ele se dedicar, muita disciplina, força de vontade para escrever e reescrever o texto quantas vezes for necessário, até que fique redondo, conciso, sem excesso de adjetivos, palavras que nada acrescentam - aquelas “gordurinhas” indesejáveis - que só o empobrecem. O ato de escrever, antes de tudo, requer muita humildade, disposição e treino. Me lembro que, já nos distantes anos de 1970, quando eu começava a dar os meus primeiros e tímidos passos na literatura, um dia fiquei conhecendo, aqui em Belo Horizonte, a grande romancista Lygia Fagundes Telles, durante uma feira literária organizada pelo livreiro Greudo Catambry. E levado pela impetuosidade da juventude, me aproximei dela, e perguntei o que eu deveria fazer para me tornar um escritor. Gentilmente ela pediu meu endereço. E dias mais tarde, para minha surpresa, recebi uma carta dela, até hoje guardada como um tesouro, e que dizia o seguinte: " Sim, meu caro Carlos Herculano, você poderá se tornar um escritor. Mas, em primeiro lugar, terá de ler muito, escrever muito, descobrir o mistério da palavra, a beleza da palavra. Gênio?, antes de tudo, é paciência. “Trouxestes a chave?”, perguntou o poeta em um poema. E essa chave, meu caro, você terá de encontrá-la na sua busca”.
Carlos Herculano Lopes é jornalista e escritor. Nasceu em Coluna, no Vale do Rio Doce, e vive em BH. Ocupa a cadeira 37 da Academia Mineira de Letras. É autor de vários livros, entre eles os romances “Sombras de julho”, “A dança dos cabelos”, “Poltrona 27" e “O último Conhaque”
Luis Giffoni
Sempre amarelo diante da página em branco. Ao encerrar o dia sem uma linha aproveitável, avermelho. De raiva. Temo o esgotamento da fonte, a incompetência, a chuva no molhado. Dar vida ao vazio do papel, ou melhor, enchê-lo com um texto no mínimo razoável é o pesadelo do qual nunca me livro. Persegue-me mesmo depois que durmo. Sonhei com um robô que, ao ser ligado, começava a escrever histórias e só parava quando estavam prontas, sem o desgaste da procura de palavras, personagens, situações, enredos. De repente, deparei com a inteligência artificial. Seria a inteligência artificial uma solução para o meu medo? Nunca! O invento acabaria com o melhor da festa, o instante em que a cabeça e a ideia entram em fase, se fundem, e o mundo se ordena. Ele me roubaria o momento da síntese, da captura, do insight, do átimo de discernimento que faz toda a diferença. Quem cria sabe como a sensação é prazerosa. Pode vir de um poema, uma crônica, ou até uma solução arquitetônica, um diagnóstico médico. O processo culmina – ou apenas se inicia? – no mesmo eureka neuronial. Como transformar lampejos em palavras? como transpor a rapidez da química mental para a lentidão da escrita? Como agarrar a inspiração antes que acabe, antes que fuja? Como traduzir a amplitude da emoção para a rigidez do símbolo, da letra? Como conduzir o estouro da boiada para o curral do texto? Bem, nessa hora, não há berrante que ajude. Nem berro. não há berrante nem berro. Não conheço outro caminho senão o da experiência, do exerício e do erro. Cerca-se daqui e dali, rodeia-se, fecha-se a porteira com muita rês do lado de fora. Invejo quem consegue, na primeira investida, capturar o rebanho. A página em branco é um desafio com recompensas que marcam a vida e o texto.
Luis Giffoni nasceu em Baependi (MG) e tem mais de 20 livros publicados. Vencedor do Prêmio Jabuti, ocupa a cadeira 33 da Academia Mineira de Letras
Marcela Dantés
Eu acredito que talento não escreve livro, assim como inspiração. Se os dois vierem, como dizia Picasso: que me encontrem trabalhando. O que escreve livro é coragem, esforço, tentativa e erro. Por isso, para enfrentar a página em branco, eu passo um café quente, respiro fundo e vou. Procuro escrever todos os dias, releio o meu trabalho com minuciosa exigência. Me cerco de pessoas que sabem mais do que eu, devoro os clássicos e os contemporâneos. Escuto a rua – é daí que vem as melhores ideias. Trabalho com dedicação na composição dos personagens, organizo a estrutura do que quero escrever. E escrevo. Escrevo, fico satisfeita com o trabalho, depois detesto tudo. Reescrevo. Não desisto. Sigo tentando, até que a página já não me assuste.
Marcela Dantés nasceu em Belo Horizonte e é formada em Comunicação Social pela UFMG. Tem três livros publicados. O mais recente, “Vento Vazio”, foi lançado em 2024 pela Companhia das Letras.
Leia mais:
Dia Nacional do Escritor
Desde 1960, o dia 25 de julho é lembrado como Dia Nacional do Escritor. A data foi escolhida pelo Ministério da Educação e Cultura do Governo JK para homenagear o 1º Festival do Escritor Brasileiro, realizado pela União Brasileira de Escritores. O vice-presidente da entidade, na época, era Jorge Amado, já reconhecido como um dos grandes autores nacionais.
Participe dos canais da Itatiaia: