Ali onde as obras do trem viraram lenda, onde os ônibus chegam atrasados e apinhados, ali onde os trabalhadores esgotados moram é o bairro chamado “Fim-do-Mundo”. Onde o saneamento básico é precário e ninguém respeita os pobres: nem governo, nem patrão (que desconta folga e cesta básica), nem ladrão (que derruba velhos nos becos para roubar mixarias).
É na quebrada de “Fim-do-Mundo” que se passa “O céu para os bastardos”, de Lilia Guerra, lançamento da Todavia (176 páginas, R$ 54,90). A autora paulistana, de 47 anos, escreveu o celebrado livro de contos “Perifobia” e “Rua do Larguinho”. Técnica em enfermagem, leva para a literatura o cuidado com as palavras na simplicidade, os detalhes atentos, um olhar para as feridas da periferia.
A história
Em “O céu para os bastardos”, a narradora é Maria Expedicionária, a Sá Narinha ou Xispe, uma empregada doméstica que recolhe memórias em velhos cadernos. Do subúrbio se multiplicam cidadãos esgotados que sobrevivem em subempregos e recebem o desprezo da classe média. Florescem meninos batendo bola nas vielas, jovens que se perdem no crime, a corriola nos botecos, crianças e mães abandonadas por pais e maridos, as benzedeiras, as dores dos velhos que sustentam os modos tradicionais, cachorros e gatos magrelos. A memória afetiva da mãe lavadeira deixando as camisas alvas e engomadas. As amigas Cassina, Regininha e Bigu.
O filho da patroa que valoriza os modos de vida da periferia e enxerga pessoas ali — a cena em que ele aprende sobre a escravidão nasce antológica.
Uma história de sobrevivências: “cada um escapa como pode”, admite a certa altura.
É no velório do velho Genuíno que as famílias do bairro se reencontram e onde a velha guarda da escola de samba presta a última homenagem. Com sensibilidade e, contraditoriamente, ternura e amargura, Sá Narinha vê os velhos conhecidos passando e nos apresenta suas histórias. Há muita tristeza e alguma esperança. “A cidade chamada amargura. Ela vasculha os esconderijos desse lugar onde habita”, analisa a narradora.
A persistente violência contra a mulher que alimenta tragédias familiares é um dos fios condutores desta história. Julio Cesar sempre fez o que quis: não foi falta de amor em casa, apesar do mistério sobre a identidade do pai. O que faz de alguém criminoso?
Lilia Guerra se insere em um movimento forte na literatura contemporânea que traz o morro e os conjuntos habitacionais para o centro — de Carolina Maria de Jesus a Ferréz, de Paulo Lins a José Faleiro — que fica difícil contê-la no rótulo de “literatura periférica”. Uma cronista do seu tempo, que faz da literatura um registro de becos e vidas que insistem em não ser esquecidos.