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Hoje começa o inverno! Ouça músicas sobre a estação mais fria do ano

Adriana Calcanhotto, Simone, Elis Regina e Elba Ramalho cantaram as esperanças e desilusões atribuídas ao clima invernal

Adriana Calcanhotto lançou, em 1994, ‘Inverno’, parceria com Antonio Cicero que se tornou um de seus maiores sucessos

A estação mais fria do ano nem por isso deixou de inspirar os compositores brasileiros, que, ao longo dos anos, souberam tratar o inverno com poesia e descontração. Claro que o sentimento mais identificado à estação foi o de desencanto e desalento, mas nem sempre foi assim, como comprova a inventividade de alguns de nossos mais celebrados compositores. Passando pelo samba-canção, pelo xote e pela MPB, o inverno é recebido de braços abertos (e, de preferência, algum aconchego quente), por Cartola, Elba Ramalho, Dominguinhos, Angela Ro Ro, João Bosco, Elis Regina, e etc.

“Volta” (samba-canção, 1957) – Lupicínio Rodrigues

Para toda uma geração, a música “Volta” está associada a uma campanha pela doação de agasalhos para pessoas em situação de vulnerabilidade, moradores de rua. “Quantas noites não durmo/ A rolar-me na cama/ A sentir tantas coisas/ Que a gente não pode explicar/ Quando ama/ O calor das cobertas/ Não me aquece direito/ Não há nada no mundo/ Que possa afastar esse frio do meu peito”, dizem os versos propagados pela cantora Joanna na década de 1990.

Originalmente, a música foi lançada por Linda Batista, em 1957, e a intenção de Lupicínio Rodrigues também era outra, como fica claro no verso final. “Volta, vem viver outra vez ao meu lado/ Não consigo dormir sem teu braço/ Pois meu corpo está acostumado...”. A música foi gravada por Gal Costa e Rosa Passos. A letra também remete a um sentimento invernal: “Não há nada no mundo/ Que possa afastar/ Esse frio em meu peito…”.

“Poema da Rosa” (MPB, 1969) – Jards Macalé e Bertolt Brecht

Jards Macalé não perde a melancolia da voz, mas parece tê-la tornado mais madura.Aluno do maestro Guerra-Peixe, o músico teve formação acadêmica, embora tenha sempre adotado uma postura radical e diametralmente oposta ao rigor das apostilas tanto em cima do palco quanto nos estúdios de gravação.

“Não sou tropicalista! Toda a minha geração foi ouvinte da Rádio Nacional, que tocava música popular e erudita. Radamés Gnatalli foi um músico erudito que inovou as orquestrações da música popular. Para mim, não existem mais fronteiras...”.

Em 1969, ele musicou o lindo “Poema da Rosa”, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, lançado pela cantora Nara Leão. O próprio Macalé deu a sua primeira versão para a canção em 1977, no disco “Contrastes”; posteriormente, ganhou a voz de Cida Moreira, em “Soledade”. “Quando sopra o vento frio/ E o inverno gela o jardim/ Eu tenho calor em casa/ E fico quietinho assim”, enuncia a letra da música.

“Dona de Castelo” (samba-canção, 1974) – Jards Macalé e Wally Salomão

“A música romântica brasileira sempre foi over. Orestes Barbosa escreveu: ‘a porta do barraco era sem trinco e a lua furando nosso zinco parecia um estranho festival’. Wally queria uma coisa que fosse o over do over. Que exacerbam essa dor da música brasileira”, conta Jards Macalé. Esse conceito guiou a linha de morbeza romântica proposta por Wally Salomão, movimento estilístico que procurava unir a tradição romântica da canção brasileira a uma morbidez inerente à beleza.

O disco “Aprender a Nadar”, lançado por Jards Macalé em 1974, foi concebido sob essa ótica. De Orestes Barbosa e Valzinho, ele gravou “Imagens”, e, com Wally, compôs “Dona de Castelo”, belo exemplar. A música foi regravada por Adriana Calcanhotto, Fafá de Belém e Leila Pinheiro. Num dos versos mais bonitos, a canção diz: “sobre o borralho da sarjeta/ chegou o inverno”.

“Corsário” (MPB, 1975) – João Bosco e Aldir Blanc

Mineiro de Ponte Nova, João Bosco tornou-se conhecido em todo o Brasil justamente porque, ao lado do principal parceiro Aldir Blanc, cantou as mazelas e glórias do país. Em 1973, há 50 anos, ele lançou o seu primeiro disco, que tinha, como destaque, “Bala com Bala”, gravada um ano antes por Elis Regina, a mais exuberante intérprete de seu repertório. Elis também deu voz a “Corsário”, parceria com Aldir Blanc lançada por Ney Matogrosso em 1975. Embora não cite nominalmente a palavra “inverno”, a canção é clara ao abordar esse clima em seus primeiros versos: “Meu coração tropical está coberto de neve mas/ Ferve em seu cofre gelado/ E à voz vibra e a mão escreve mar”.

“Cigarra” (MPB, 1978) – Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

O disco “Cigarra”, lançado por Simone em 1978, trouxe um verdadeiro desfile de hits, a começar pela música-título, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. “Medo de Amar Nº 2”, de Sueli Costa e Tite de Lemos, “Diga Lá, Coração”, de Gonzaguinha, “As Curvas da Estrada de Santos”, de Roberto e Erasmo Carlos, e “Ela Disse-me Assim”, de Lupicínio Rodrigues, completavam o repertório de sucessos. Em meio a essas canções, “Então Vale a Pena”, de Gilberto Gil, traduzia liricamente a percepção da morte. E era assertiva na conclusão: “Se a morte faz parte da vida/ E se vale a pena viver/ Então morrer vale a pena”, diz. Lá pelas tantas, “Cigarra” determina: “Porque ainda é inverno em nosso coração”.

“O Inverno do meu Tempo” (samba, 1979) – Cartola e Roberto Nascimento

Angenor de Oliveira, o popular Cartola, nasceu no dia 11 de outubro de 1908, e morreu no dia 30 de novembro de 1980, aos 72 anos. Nascido no bairro do Catete, Cartola logo se mudou para o Morro de Mangueira com a família, e ajudou a fundar a tradicional escola de samba do Carnaval carioca. O apelido de Cartola veio da mania de usar um chapéu-coco para se proteger do cimento enquanto trabalhava como servente de obra.

Apesar do talento, Cartola demorou a ser reconhecido, e só gravou o seu primeiro disco em 1974, aos 66 anos. Em 1979, Cartola lançou o bonito samba “O Inverno do meu Tempo”, parceria com Roberto Nascimento que refletia sobre a finitude. A música ganhou a voz de Elizeth Cardoso, e depois foi gravada por Cida Moreira, Nelson Sargento e Elton Medeiros.

“As Aparências Enganam” (MPB, 1979) – Tunai e Sérgio Natureza

Elis Regina toma para si todas as nuances da música “As Aparências Enganam”, letra de Sérgio Natureza com melodia de Tunai, reforçando o epíteto que ela concedeu para si mesma, de “maior cantora do Brasil”. Lançada em 1979, no disco “Essa Mulher”, a canção exige da intérprete a atenção a uma emotividade concentrada, que não se deixa derramar nos versos cheios de passionalidade.

Natureza constrói um paralelo entre as estações do ano para dividir os altos e baixos da relação amorosa, com rara sensibilidade. No CD “Um Pouco de Mim”, Natureza recita os versos com uma voz emocionada. Ao longo da letra, as estações do ano são referidas, e o inverno não fica de fora. “Os corações cortam lenha e depois se preparam pra outro inverno”, cantam.

“Frevo Mulher” (frevo, 1979) – Zé Ramalho

Não deu nem tempo de o técnico de som apertar o botão e Dominguinhos já desfiava a sua sanfona. Além dele, participaram da gravação de “Frevo Mulher” o autor Zé Ramalho (no violão), Geraldo Azevedo (também ao violão) e Wilson das Neves (na percussão). “É uma explosão, uma energia contagiante”, define Amelinha, responsável por lançar o hit em 1979, no álbum homônimo que lhe valeu Disco de Ouro pelas mais de 100 mil cópias vendidas.

A entrega da intérprete à canção tinha mais um motivo: ela era a musa da letra. Amelinha e Zé Ramalho haviam acabado de começar a namorar e se encontravam no Hotel Plaza, no Rio. Eles foram casados entre 1978 e 1983, e tiveram dois filhos. No estúdio, Zé Ramalho observava os compositores levarem músicas para Amelinha e serem recebidos com muita leveza e simpatia. “Quantos homens eram inverno/ Outros verão…”, canta Amelinha.

“Inverno” (MPB, 1994) – Adriana Calcanhotto e Antonio Cicero

Adriana Calcanhotto nasceu em Porto Alegre no dia 3 de outubro de 1965. Cantora, compositora, instrumentista, produtora musical, escritora e professora, ela começou a carreira se apresentando em bares de sua cidade natal.

Depois de se destacar no circuito de música independente de Porto Alegre e São Paulo, rumou para o Rio de Janeiro, onde gravou o primeiro disco “Enguiço”, de 1990, que lhe valeu o Prêmio Sharp de revelação feminina daquele ano.

Com “Senhas”, de 1992, passou a tocar no rádio graças a baladas como “Mentiras” e “Esquadros”. Com “A Fábrica do Poema”, de 1994, emplacou o hit “Metade”, e se consolidou no cenário da música brasileira, com poetas do porte de Wally Salomão e Antonio Cicero, com quem ela criou o sucesso “Inverno”.

“O Inverno É Você” (xote, 2017) – Dominguinhos e Climério

Elba Maria Nunes Ramalho nasceu em Conceição, no interior da Paraíba, no dia 17 de agosto de 1951. Em 1962, a família se mudou para Campina Grande, onde o pai de Elba tornou-se dono de um cinema na cidade. Elba começou a carreira tocando bateria no conjunto feminino As Brasas.

Em 1974, atuou como bailarina na peça “Viva o Cordão Encarnado” e, em 1978, recebeu a grande chance da sua carreira, quando foi selecionada para participar da “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, cantando clássicos como “O Meu Amor”, em dueto com Marieta Severo, e “Geni e o Zepelim”.

Na esteira do sucesso, gravou o primeiro LP, “Ave de Prata”, em 1979, e nunca mais parou. Entre os maiores sucessos de Elba estão “Banho de Cheiro”, “Bate Coração”, “O Xote das Meninas”, “De Volta pro Aconchego”, “Chão de Giz”, etc. Em 2020, Elba lançou o seu trabalho mais recente, “Eu e Vocês”, gravado durante a pandemia.

Ali, ela dá voz a “O Inverno É Você”, xote de Dominguinhos e Climério, lançado em 2017. Ao lado do padre Fábio de Melo, a cantora paraibana interpreta a chegada da estação mais fria do ano, num ritmo envolvente e aconchegante, apropriado ao clima.

“Boemia do Sono” (samba, 2000) – Angela Ro Ro

Ângela Maria Diniz Gonçalves, a popular Angela Ro Ro, ganhou o apelido ainda na infância, devido à gravidade de sua risada rouca. Inicialmente, ela não gostou do apelido, mas logo acabou adotando-o em sua carreira artística.

Ela nasceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 1949. Sagitariana, ficou conhecida pelo temperamento explosivo e passional na década de 1980, protagonizando algumas das confusões mais conhecidas da música brasileira.

Após um longo período de sofrimento devido aos abusos etílicos e às decepções amorosas, Angela, homossexual assumida, largou o álcool e todas as outras drogas, incluindo o cigarro, e emagreceu mais de 50 quilos.

Em 1979, Angela Ro Ro gravou o seu primeiro LP, em que já apareciam sucessos como “Gota de Sangue”, “Tola Foi Você”, “Não Há Cabeça”, “Cheirando a Amor” e “Amor, Meu Grande Amor”, parceria com Ana Terra, que foi seu maior sucesso.

Em “Boemia do Sono”, samba do ano 2000, ela tira um sarro com a nova rotina e canta: “Tomo banho todo dia, até no inverno/ Quem me viu naquele inferno/ Não me reconhece mais…”.

Bônus: “Tempo da Estiagem” (samba, 2020) – Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira

O samba “Tempo da Estiagem” foi composto por Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira no início de 2020. É a estreia da dupla no gênero. Juntos, o mineiro Vidigal e o paulista Ferreira já haviam criado duas marchinhas de Carnaval: “Cuidado Com o Pescoço” e “Retiro do Vampiro”, em 2017 e 2018, respectivamente. Para interpretar a mais nova composição, eles convidaram a cantora Deh Mussulini e o violonista Lucas Telles, que também cuidou dos arranjos e da produção da faixa. “Tempo da Estiagem” é um samba lírico, na tradição da música popular brasileira afeita à dor de cotovelo, e que bebe nas influências tanto de Batatinha quanto Paulinho da Viola, com doce melancolia…