O caso do atacante Vini Jr., do Real Madrid e da Seleção Brasileira, tem monopolizado as manchetes nos últimos dias. E não é pra menos. Crime no Brasil, o racismo é uma prática que merece ser combatida por todos aqueles que se identificam com os melhores valores da humanidade e da civilização. É preciso respeitar e ser solidário com a dor do próximo, sem, jamais, abaixar a cabeça para os racistas. De Gilberto Gil a Sandra de Sá, passando por Chico César e Martinho da Vila, trazemos a arte para essa luta que é de todos nós que acreditamos em um mundo mais justo e digno.
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“O Canto dos Escravos” (domínio público, 1928) – Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Doca da Portela
Lançado pela Eldorado em 1982, o disco “O Canto dos Escravos” remonta a pesquisa empreendida por Aires da Mata Machado Filho na Chapada Diamantina no ano de 1928, quando recolheu “cantigas populares em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração”. Segundo ele próprio, foi através de “notas apressadas” que este tesouro da história nacional tomou forma e corpo, 53 anos depois, através das vozes de Clementina de Jesus, do sambista paulistano Geraldo Filme e do carioca Doca da Portela, trio extremamente identificado com as causas negras e o combate ao racismo no Brasil. Ao todo a coletânea apresenta 14 cantos e mais duas faixas extras.
“Negro Gato” (Jovem Guarda, 1964) – Getúlio Côrtes
“O negro gato existiu mesmo. Era um gato que não me deixava dormir, ficava no telhado de zinco do meu barraco e toda noite me perturbava. E ele ficava me olhando, encarando. Pensei: ‘um dia isso vai me dar um retorno’. Mas demorou muito pra vir inspiração, foi quase um mês até ficar pronta essa música, que é também um pouco da minha história, porque eu sempre fui um cara sem recursos econômicos, então misturei as duas coisas”, conta Getúlio Côrtes, autor de “Negro Gato”, lançada pelo conjunto Renato e Seus Blue Caps em 1964 e regravada por Luiz Melodia em 1980, no disco batizado de “Nós”.
“Tributo a Martin Luther King” (sambalanço, 1967) – Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli
Wilson Simonal não era santo, e tampouco o diabo que o pintaram após o polêmico e controvertido envolvimento com as forças de segurança do Estado durante o período nefasto da ditadura militar do Brasil. Por outro lado, é inegável que representou uma vitória de classe, o negro que ascende de condição, circunstância rara no país, cuja exceção reside, justamente, em profissões de destaque e com pouco mercado, como a música e o futebol. Embora não fosse ligado a movimentos sociais, Wilson Simonal se afirmava, e identificava-se com a luta do negro nos Estados Unidos presidida por Martin Luther King, para quem compôs um tributo em parceria com Ronaldo Bôscoli.
“Negro É Lindo” (samba-rock, 1971) – Jorge Benjor
Jorge Benjor esbanjava sincretismo no álbum “A Tábua de Esmeralda”, um marco da cultura nacional, lançado em 1974. Três anos antes, porém, a posição de orgulho da raça se fazia enxergar no título do álbum de 1971, “Negro é Lindo”. Samba-rock bem ao caráter do compositor, que infundiu uma marca única e indissociável no nosso cancioneiro, tratado por muitos como revolucionário, a canção prega bem os valores de Jorge. Com seu habitual sotaque, sua inconfundível dicção e o ritmo próprio do violão, Jorge Benjor afirma sem meias palavras as qualidades da sua cor, e lança um aviso aos preconceituosos: “Negro é lindo/Negro é amor/Negro também é Filho de Deus”.
“Black Is Beautiful” (música soul, 1971) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Em plena ditadura militar no Brasil, no ano de 1971, os irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle lançaram um hino à beleza e força dos negros. Para tanto, fizeram uso de um dentre os inúmeros ritmos identificados com a causa, a “soul music”. Neste mesmo ano, Elis Regina, como era de costume ao interpretar qualquer canção, acrescentou ainda mais charme e vigor à música. “Black Is Beautiful” reage com indignação e coragem a todo o histórico de discriminação contra os negros, aos estereótipos e condições petrificadas pela escravidão, e ainda arremata com versos de erotismo e sensualidade pungentes: “Eu quero um homem de cor/ Um Deus negro/ Do Congo ou daqui/ Que se integre no meu sangue europeu…”.
“Mandamentos Black” (baile, 1977) – Gerson King Combo, Augusto César e Pedrinho
Gerson King Combo talvez tenha representado como ninguém a voz dos que não eram ouvidos naqueles idos de 1970. Num país amordaço pela ditadura militar e a censura prévia, os silêncios se faziam muitos, por toda parte. No entanto, havia uma parcela da população que, mesmo em tempos ditos, institucionalmente, democráticos, eram os últimos da fila. A periferia se apoderou, paulatinamente, dos meios de comunicação, até alcançar o rap e o funk carioca. No entanto, foi com Gerson King Combo, em 1977, que esses bailes começaram a ferver. “Mandamentos Black”, parceria com Augusto César e Pedrinho, fala, de maneira simples, o que o povo queria ouvir e dizer.
“Sarará Miolo” (tropicália, 1979) – Gilberto Gil
O tropicalista Gilberto Gil sempre empunhou, dentro de suas principais propostas e demandas, a bandeira do movimento negro e contra o preconceito racial no Brasil. Figura de destaque, proativa, Gil conta ainda com uma gama de recursos e influências, raramente se valendo do artifício panfletário. O compositor costuma abordar o tema de maneira perspicaz, sábia, a que melhor atingia o coração e a consciência. Além dos trabalhos relacionados a Bob Marley, trafegou pelos blocos negros do carnaval da Bahia, como o “Ilê Ayê”, e dedicou o disco “Realce” quase que inteiramente a esse tema, só que em múltiplas abordagens. Um dos exemplos é a espirituosa “Sarará Miolo”, de 1979.
“Nego Dito” (vanguarda, 1980) – Itamar Assumpção
São raros os artistas de vanguarda que não se valem de uma sólida formação pautada na tradição. O pintor Wassily Kandinsky, inventor do abstracionismo nas artes plásticas, baseava suas criações no folclore, nos rituais xamânicos dos índios de sua região e nos contos de fada. Qualquer semelhança com a música de vanguarda proposta por Itamar Assumpção em terras tupiniquins não é mera coincidência. Sua obra está recheada de referências desse tipo, por exemplo, nas canções “Sutil” (“muita areia para o meu caminhãozinho”) e “Aprendiz de Feiticeiro”. Mas é em “Nego Dito”, lançada no álbum de estreia, em 1980, que Itamar tece este encontro da maneira mais radical. A expressão popular pinçada não poderia ser outra do que “mato a cobra e mostro o pau”.
“Sorriso Negro” (samba, 1981) – Jorge Portela e Adilson Barbado
Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça. “Sorriso Negro” foi um presente dos amigos Jorge Portela e Adilson Barbado para gravar no álbum da cantora de 1981, que recebeu este título. Verdadeira música de afirmação e de combate ao racismo, ela confirma em seus versos: “Negro é a raiz da liberdade”. Essa música foi regravada pelo Fundo de Quintal e por Mart’nália.
“Olhos Coloridos” (música soul, 1982) – Macau
Sandra de Sá surgiu no embalo da soul música brasileira capitaneada por Tim Maia, e que contava ainda com Cassiano, Hyldon e Lady Zu. Com sua voz rascante e interpretação visceral era chamada por Cazuza de “a nossa Billie Holiday”. As atitudes de Sandra dentro e fora do palco sempre foram indissociáveis, exemplo de artista que se entrega ao ofício e vive a vida em cada música. “Olhos Coloridos” encontrou a intérprete perfeita em Sandra. Essa música de Macau, lançada em 1982, tornou-se emblema e manifesto do orgulho negro, além de um puxão de orelhas aos desavisados. “Todo brasileiro tem sangue crioulo”, avisa antes de entrar no refrão que exalta o cabelo sarará.
“Zé do Caroço” (samba, 1985) – Leci Brandão
Leci Brandão nasceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de setembro de 1944. Cantora e compositora, ela iniciou a carreira na década de 1970, tornando-se a primeira mulher a participar da ala de compositores da Mangueira, sua escola de coração. Ela também atuou na novela “Xica da Silva”, da Manchete. Entre seus maiores sucessos, estão músicas como “Zé do Caroço”, “Só Quero Te Namorar”, “Fogueira de Uma Paixão” e “Negro Zumbi”. Primeira cantora de destaque da música brasileira a se declarar homossexual publicamente, numa entrevista, em 1978, para o jornal “Lampião da Esquina”, dedicado ao público LGBTQIA+, a sambista Leci Brandão filiou-se ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em 2010 e se elegeu deputada estadual por São Paulo, com mais de 85 mil votos.
“Meu Homem” [Carta a Nelson Mandela] (samba, 1988) – Martinho da Vila
Com o acompanhamento de Raphael Rabello no violão de 7 cordas, Martinho da Vila registrou, em 1990, no álbum “Martinho da Vida”, a composição de sua autoria que já havia sido lançada dois anos antes, em 1988, por Beth Carvalho, no LP “Alma do Brasil”. Na canção, o sambista descreve um sonho em que, libertos de preconceitos, os ensinamentos do líder sul-africano, Nelson Mandela, são seguidos, até que no final lembra-se dos tristes tempos do Apartheid e roga para que um dia os sonhos sejam somente doces. “Meu Homem [Carta a Nelson Mandela]” combina, em seu percurso, melancolia e sensualidade, tanto na interpretação de Martinho da Vila quanto na de Beth Carvalho.
“Sá Rainha” (MPB, 1999) – Maurício Tizumba
Maurício Tizumba é um militante da causa negra nas Minas Gerais e no Brasil. Ator, compositor e cantor, natural de Belo Horizonte, movimenta a cena na capital e pelo interior do Estado, com participações em peças de teatro pela “Cia. Burlantins”, formada exclusivamente por atores negros, e até em especiais de televisão, como no caso da novela “Saramandaia”, exibida pela Rede Globo em 2013. Tizumba é um dos principais entusiastas do Congado, da Folia de Reis e de outras manifestações típicas do interior de Minas trazidas pelos povos africanos ao Brasil. Na música “Sá Rainha”, lançada no álbum “África Gerais”, o músico utiliza sua descontração para criticar o preconceito.
“Identidade” (samba, 1999) – Jorge Aragão
Jorge Aragão é bem direto na música “Identidade”, ao abordar o preconceito que acontece de maneira velada no país. Ao discriminar o elevador como o ambiente dessa prática, Aragão faz um recorte para ser mais incisivo ao diagnosticar costumes tristemente enraizados. O samba lançado em 1999 discorre também sobre frases de preconceito racial históricas no Brasil, dentre elas a do tal “preto de alma branca”. Sem perder o ritmo e o suingue, Aragão mostra o descompasso de país formado essencialmente pela miscelânea, mas que relega muitos daqueles que o construíram a posições inferiores, com pouca perspectiva de ascendência social. A não ser pelo elevador de serviço…
“A Carne” (rap, 2002) – Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti
Composição de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, a letra de “A Carne” explora o racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Interpretada por Elza Soares, a faixa está presente no álbum “Do Cóccix Até o Pescoço”, lançado em 22 de abril 2002. Já ao longo do repertório de “Planeta Fome”, de 2019, Elza reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha durante a ditadura militar. “Passei pela ditadura, me lembro daquele momento e vejo que hoje é mais ou menos parecido. O Brasil está passando por uma soneca, mas vai acordar, sou esperançosa”, afirma.
“Respeitem Meus Cabelos, Brancos” (MPB, 2002) – Chico César
Ao se nutrir de “músicas que apontam para a questão negra”, Xenia França trouxe referências ligadas a jazz, música cubana, samba-reggae, rock e candomblé. “Tudo o que vem dessa ancestralidade me atravessou, e eu transmiti essa diáspora com o meu jeito de fazer música”, observa. Xenia ainda ressalta que, na verdade, foi “escolhida pelas canções”. Uma dessas a marcou desde a infância, quando ela ouvia, no rádio, “Respeitem Meus Cabelos, Brancos”, do paraibano Chico César.
“Velhos de Coroa” (MPB, 2012) – Sérgio Pererê
“Por ser compositor e ter muito a dizer, eu acabei priorizando, a vida inteira, as minhas composições, mas, ao mesmo tempo, convivi, desde cedo, com influências trazidas pelo meu pai, que era seresteiro, e cresci escutando, ao lado de minhas irmãs, muita MPB e até artistas de fora, como Michael Jackson e James Brown”, conta Sérgio Pererê. Em 2012, Titane lançou uma de suas mais bonitas canções, “Velhos de Coroa”, que recebeu regravação da cantora Fabiana Cozza em 2015, no álbum “Partir”. “É de lei e é de vera/ É de lua, é de luar/ Quando um negro velho canta/ Faz as estrela brilhar/ E a lua canta junto/ Com o negro no congá”, diz a letra.
“Abram os Caminhos” (pop, 2019) – MC Tha
Não é de hoje que Elza Soares representa a mulher sobrevivente, batalhadora, livre, dona de seus desejos e vaidades. Para coroar a carreira da nonagenária intérprete, nada melhor do que a canção “Maria da Vila Matilde”, peça que conjuga samba e música eletrônica, na veia da nova MPB, cheia de modernidade sem esquecer a tradição, bem ao estilo ousado e inquieto de Elza. Denúncia clara à violência contra a mulher, a canção serviu para suscitar debates e cumpriu com sua função social. Mais do que isso, exprimiu a arte de uma mulher talentosa, guerreira, determinada, que não abre mão de seus prazeres. A música ganhou uma versão do bloco feminista Sagrada Profana para o Carnaval de BH, que também canta “Abram os Caminhos”, de MC Tha.