Em tempos de polarização e tendências radicais é bom relembrar o quanto a música e a arte podem contribuir positivamente para esse debate, principalmente quando se trata de aplaudir a diversidade. No caso, as diversas formas de amor e união afetiva, já reconhecidas, inclusive, pelo Estado brasileiro, são cantadas em verso e prosa por nomes como o performático Edy Star, Cássia Eller, Angela Ro Ro, Caetano Veloso e Erasmo Carlos, que homenageou a mais famosa transexual do país, Roberta Close. São canções que exaltam, sobretudo, a beleza da liberdade. Mas poderiam ser muitas mais, já que o amor não tem limites, tal qual a música e a arte. No Dia Internacional contra a Homofobia, vamos celebrar a diversidade.
Ouça a playlist completa:
“Bárbara” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Em 1972, Chico Buarque compôs a primeira música que se tem notícia a abordar o amor homossexual entre duas mulheres. “Bárbara” foi composta com Ruy Guerra, para a peça de teatro “Calabar: O Elogio da Traição”, censurada à época da ditadura. A música trata o tema de forma lírica e intensa, sem julgamentos morais e preconceitos. Foi regravada por Angela Ro Ro (homossexual assumida), Maria Bethânia, Gal Costa, Simone e outras. Crescente em seu drama romântico, letra e melodia se unem numa tensão que é repetida no discurso poético: “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no fim da noite serei tua/ Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva/ Acumulando de prazeres teu leito de viúva...”, diz a mulher.
“Bem Entendido” (balada, 1974) – Renato Piau e Sérgio Natureza
Em 1974, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Jorge Mautner, Galvão, Roberto e Erasmo Carlos e outros nomes do cenário nacional criaram canções especialmente para homenagear e serem interpretadas por Edy Star, baiano pioneiro em trazer as influências do rock cheio de purpurina para o Brasil, reconhecido no exterior como glam. Dentre esses nomes estavam Renato Piau e Sérgio Natureza, que criaram a balada “Bem Entendido”, à época uma gíria para designar os homossexuais. A letra não poderia ser mais explícita e libertadora, com versos como “o amor só faz sentido todo, quando a gente gosta e sente um calafrio, um frio fino na espinha, e o coração cheio de sangue quente, bem quente”. Após esse primeiro disco, Edy não lançou mais nenhum, nem era preciso, sua performance foi suficiente para balançar as estruturas da caretice nacional.
“Androginismo” (pop rock, 1978) – Kledir Ramil
Os porões da ditadura militar brasileira estavam infestados de torturas sinistras enquanto, em 1978, o grupo gaúcho Almôndegas lançava “Androginismo”, música de Kledir Ramil. Em dezembro daquele ano, o Ato Institucional N º5, que, dentre outras medidas, fechou o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas, finalmente caiu, após uma década. Passados 40 anos, o país elegeu um presidente que defendia a tortura e apoiava manifestações em favor da volta do AI-5, e Almério tornou a cantar os versos de Ramil: “Quem é esse rapaz que tanto androginiza/ Que tanto me convida pra carnavalizar?/ Que tanto se requebra no céu de um salto alto/ Que usa anéis e plumas a lantejoulizar?”. A faixa integra “Desempena Vivo”, registro do álbum de estúdio gravado em 2017, o segundo da carreira solo do pernambucano Almério – que valeu a ele o Prêmio da Música Brasileira na categoria cantor revelação –, e apresenta, ao todo, 19 canções que foram interpretadas no Teatro Santa Isabel, no Recife.
“Super-Homem, a Canção” (MPB, 1979) – Gilberto Gil
Em 1979, após a trilogia iniciada com “Refazenda”, e que seguiu com “Refavela” e “Refestança”, ao lado de Rita Lee, Gilberto Gil lançou o álbum “Realce”, um dos de maior destaque de toda a sua trajetória. Novamente, o compositor aborda de maneira sensível o universo que se tangencia por mulheres e homens. Eliminando a linha imaginária que se consolidou por moral e costumes, Gil afirma sobre a canção: “todo homem é mulher e toda mulher é homem”. A inspiração para a música veio após o parceiro Caetano Veloso chegar entusiasmado para lhe contar a história do filme do “Super-Homem” que acabara de assistir no cinema. O ponto que mais impressionou Gil foi o herói “mudando o curso da história por causa da mulher”, ao tentar reverter o tempo.
“Preciso Tanto!!!” (música disco, 1980) – Angela Ro Ro
Angela Ro Ro lançou um sem número de canções com apelo homossexual, tanto como compositora quanto na condição de intérprete. Nesta segunda seara destaca-se a interpretação visceral de “Bárbara”, música de Chico Buarque e Ruy Guerra criada para o musical “Calabar, o Elogio da Traição”. Especialista em unir a lamentação amorosa ao deboche desinibido, Angela sempre se destacou entre as compositoras nacionais, sobretudo, pela postura aguerrida, caracterizada por um senso de humor inteligente e, não raro, politicamente incorreto, características que enaltecem ainda mais sua postura artística. Em 1980, no álbum “Só Nos Resta Viver”, Ro Ro distribuiu mais algumas dessas pérolas, dentre elas “Preciso Tanto!!!”, com todas as exclamações por direito, em que, sem ser totalmente explícita, convida a companheira ao sexo, certa de lhe tirar os bodes da cabeça com promessas do tipo: “eu faço gostoso e com jeito, pra você não botar defeito, no meu amar…”.
“Ele Me Deu Um Beijo na Boca” (tropicália, 1982) – Caetano Veloso
A década de 1980 foi sim pródiga em abordar o tema da diversidade sexual, já que o embate com os militares da ditadura no país estava no final, e Caetano Veloso, sempre antenado com sua tropicália, também surfou na onda. Apesar de exibir uma imagem híbrida desde o início de seu aparecimento no cenário nacional, foi em 1982, no disco “Cores, Nomes”, que Caetano lançou uma das músicas mais explícitas referentes ao tema; claro à sua maneira. Sem abandonar o mundo de interferências a que alguns consideravam hermetismo em suas canções, o músico já dava seu recado logo no título. “Ele Me Deu Um Beijo na Boca” acompanhava o discurso endossado pela foto da contracapa do álbum, em que Veloso aparece beijando um homem. Mais uma excelente contribuição de um dos artistas que mais exaltaram as liberdades individuais no país. João Donato, Djavan e Rolling Stones são alguns dos citados na música.
“Masculino e Feminino” (MPB, 1983) – Pepeu Gomes e Baby do Brasil
Em 1983, o casal Pepeu Gomes e Baby Consuelo, que depois se tornaria Baby do Brasil, compôs um dos hinos da diversidade e contra o preconceito no Brasil. Já devidamente embalados pela aura mística que sempre os acompanhou, os compositores iniciam uma reflexão sobre o sexo do Criador para, em seguida, afirmar: “Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino”. A música foi lançada por Pepeu, em álbum com o mesmo nome, “Masculino e Feminino”, e depois regravada mais de uma vez por Baby. Recentemente, o casal voltou a interpretá-la em parceria no “Rock in Rio” de 2015. Um dos versos que se tornou mais conhecido foi justamente o da introdução, uma lição de vida contra o machismo: “Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino…”.
“Dá Um Close Nela” (balada, 1984) – Erasmo Carlos e Roberto Carlos
Em 1984, a dupla formada por Roberto Carlos e Erasmo Carlos lançou a música “Close”, que popularmente ficou conhecida como “Dá um close nela”. Evidente homenagem para Roberta Close foi lançada e interpretada por Erasmo em clipe protagonizado pela modelo e atriz, sem dúvida a mais famosa transexual do Brasil. A beleza de Roberta foi sempre tão marcante que ela segue como a única transexual a estampar a capa da revista Playboy no país. Cumpre ressaltar também o talento da artista como atriz, com atuação destacada no filme “O Escorpião Escarlate”, de Ivan Cardoso, num número de strip-tease. A música enaltece as qualidades físicas de Roberta Close, uma mulher na acepção da palavra, em todos os seus atributos. Ainda enfrentando preconceitos, Close é um exemplo de luta e dignidade para todos que desejam usufruir de sua sexualidade independente das barreiras impostas pela moral.
“Rubens” (rock, 1986) – Mário Manga
Provavelmente a música mais explícita do cancioneiro nacional no tocante à homossexualidade masculina, “Rubens”, rock de 1986 composto por Mário Manga, ganhou sua versão definitiva na “voz de trovão”, como bem dito por Rita Lee, da icônica Cássia Eller. Como não poderia deixar de ser, havia aí mais uma ironia e tabu a ser placidamente derrubado por Cássia que, homossexual assumida, tornou-se uma das mais importantes figuras na luta pelo direito à união homoafetiva quando a Justiça decidiu dar a guarda de seu filho Chicão para Eugênia, companheira da cantora por décadas, em decisão, até aquele momento, inédita. A postura de Cássia durante toda a vida foi um exemplo de liberdade e renascimento. Roqueira radical no início da carreira, ela atingiu a maturidade artística como mãe, descobrindo nuances em seu repertório, isso sem abandonar o vigor de suas interpretações. “Rubens”, lançada pelo grupo “Premeditando o Breque”, em 1986, não deixa dúvidas quanto ao ditado: “Rubens, eu acho que dá pé, esse negócio de homem com homem, mulher com mulher!”.
“Dia dos Namorados” (balada, 1987) – Cazuza e Perinho Albuquerque
Composta em 1986 a música “Dia dos Namorados” ficou fora de “Só Se For a Dois”, disco lançado por Cazuza um ano mais tarde. Parceria do “poeta exagerado” com Perinho Albuquerque, a música foi então oferecida para Zezé Motta, que a cantou em shows, mas não chegou a registrá-la por falta de gravadora na época. Trinta anos depois, com o intermédio do produtor e baixista Nilo Romero a gravação feita com a voz de Cazuza foi recuperada e mais: passou a contar com a adesão de Ney Matogrosso. Não por acaso, o dueto bisa relação protagonizada pelos dois, que foram namorados. É, no entanto, o único registro musical com a voz dos dois juntos.
“Não Recomendado” (pop, 2014) – Caio Prado
Na faixa “Não Recomendado”, a cantora Elza Soares dispara contra a perseguição à comunidade LGBT. Os recentes episódios de censura na Bienal do Livro do Rio, com o recolhimento de exemplares a pedido do prefeito Marcelo Crivella, e o cancelamento de produções cinematográficas por parte da Ancine, a mando do presidente Jair Bolsonaro, têm incomodado a artista. “É um absurdo tão grande que eu não sei nem o que falar. Homofobia é crime, já conquistamos essa vitória. Deixem a liberdade do povo em paz”, desabafa. A música foi composta por Caio Prado, e também lançada por ele, em um disco solo de 2014.
“Flutua” (pop, 2017) – Johnny Hooker
“Quando a Elza Soares faz um disco em que predominam as denúncias contra a violência de classe, sexual e de gênero, isso anuncia os tempos que estamos vivendo”, aponta o crítico musical Hugo Sukman. Na opinião da crítica musical Débora Nascimento, a profusão de uma música popular ativista se deve a uma “democratização dos meios de produção musical e divulgação”. “Foi aberto um gigantesco espaço a uma maior diversidade de autores e, como consequência, de temas. As músicas passaram a ser compostas e interpretadas por pessoas que vivem experiências relativas às suas condições no mundo”, analisa ela, que cita “Flutua”, de Johnny Hooker. “Se alguém quiser entender a homossexualidade no Brasil do final desta década, essa composição será referência”, diz. A faixa ganhou um belo videoclipe com a participação de Liniker.
“Princesinha Underline 86” (samba, 2018) – Manu da Cuíca
Liniker e MC Linn da Quebrada, por exemplo, se associaram ao movimento MPBTrans, termo cunhado por Jean Wyllys, deputado eleito que se refugiou fora do país devido a ameaças. A identificação com temas urgentes ainda levou toda uma juventude a idolatrar Elza Soares depois do renovador álbum “A Mulher do Fim do Mundo” (2015). Na opinião da crítica musical Débora Nascimento, a profusão se deve a uma “democratização dos meios de produção musical e divulgação”.
“Foi aberto um gigantesco espaço a uma maior diversidade de autores e, como consequência, de temas. As músicas passaram a ser compostas e interpretadas por pessoas que vivem experiências relativas às suas condições no mundo”, analisa ela. Uma canção cheia de engajamento e ginga que se inscreve nesse estilo é “Princesinha Underline 86”, samba de Manu da Cuíca lançado pela cantora Marina Iris, que diz: “Tem a sua amiga colorida/ E um colega transexual/ A barriga é quem compra a briga/ Entre a birita e o abdominal”.
“Proibido o Carnaval” (axé, 2019) – Daniela Mercury
Em junho de 2019, nos 50 anos do levante de Stonewall, enquanto a polícia de Nova York se desculpava pela violenta repressão contra homossexuais que gerou a revolta, a cantora Daniela Mercury aproveitava a celebração do icônico movimento de libertação gay para protagonizar com a jornalista e mulher Malu Verçosa, o primeiro beijo entre duas mulheres no Congresso Nacional. Esse misto de descontração e profundidade guiou a música “Proibido o Carnaval”. Ela causou alvoroço nas redes sociais em fevereiro, ao não poupar provocações para o conservadorismo de costumes. “Abra a porta desse armário/ Que não tem censura pra me segurar/ (…) Alegria cura, venha me beijar”, determina o refrão. Para completar, o videoclipe traz a participação especial de Caetano Veloso.
“O Amor É Um Ato Revolucionário” (balada, 2019) – Chico César
A experiência acumulada como presidente da Fundação Cultural de João Pessoa e, posteriormente, secretário de Cultura da Paraíba, entre 2009 e 2014, trouxe para Chico César saudades de outro ambiente menos concreto e pedregoso. “Depois de seis anos trabalhando com burocracia, vai se aniquilando a sua espontaneidade e, aos poucos, você começa a acreditar naquele universo. Eu precisava, física e mentalmente, voltar a essa pegada de deixar o fluxo correr. Não como uma corrente de metal, mas um rio corrente. Isso contaminou minha vida em geral, foi para a minha música, e o público percebeu”, comenta o cantor. Como prova dessa tese, ele lançou, em 2019, “O Amor É Um Ato Revolucionário”, em que transforma o afeto numa poderosa arma política. A canção tem tons religiosos que a carregam ao ambiente das preces e louvores. A música foi regravada pela cantora Sandy.