O cinismo de “Triângulo da Tristeza” já começa pelo título. Na película, é apresentado como alusão ao cenho franzido de um personagem, no caso, o modelo que o protagoniza, Carl, vivido por Harris Dickinson, ao lado da também modelo e influenciadora digital Yaya, interpretada pela sul-africana Charlbi Dean.
Com o desenrolar da história, o termo estará melhor associado ao triângulo como representação da pirâmide social, em que poucos alcançam o topo e a enorme maioria se digladia na base. Logo, o tema não é novo, trata-se de abordar essa profunda desigualdade social que o capitalismo nos impõe.
O roteiro tampouco é inédito. Um navio de luxo que afunda, deixando alguns poucos sobreviventes em uma ilha deserta, onde o status social se estingue, a lutar pela sobrevivência. O que o diretor sueco Ruben Östlund talvez traga de novidade seja o tom que ele adota.
A acidez da crítica é a mesma de “The Square: A Arte da Discórdia”, que o premiou com a Palma de Ouro em 2017. O maior trunfo de “Triângulo da Tristeza” será o inesperado, quanto mais para quem não conhece a obra do diretor. Dividido em três partes, o filme não se envergonha de passar de uma discussão conceitual para a violência imagética.
Exibidos como marionetes superficiais e praticamente desfeitos de sentimentos que não seja o de alimentar o próprio ego, os personagens permanecem distantes, o que poderá gerar uma certa tensão, pois não sabemos, exatamente, do que eles são capazes.
Um exemplo é a cena do elevador, quando Carl parece ter um ataque de fúria durante a discussão com a namorada, Yaya, logo controlado. É para contornar essa espécie de crise que eles decidem embarcar em um cruzeiro de luxo, numa viagem que se revelará um verdadeiro pesadelo.
Os tripulantes do navio, como óbvio dos nossos tempos, assimilaram o discurso neoliberal, o que os coloca como gentis servos. Geograficamente apartados do mundo luxuoso dos clientes, eles parecem babar nas gorjetas que, por certo, cairão das mãos de seus soberanos, se forem tratados com a devida subserviência, numa daquelas gincanas ridículas proposta pela chefe dos empregados, a infalível Paula, vivida por Vicki Berlin.
É dela a missão mais árdua do longa-metragem: retirar do quarto o capitão bêbado interpretado por Woody Harrelson, que, ademais, se identifica como marxista, num divertido embate com a personagem, ao mesmo tempo mais carismática e insólita do elenco de ricaços desprezíveis, o magnata russo dos fertilizantes Dimitry, levado à cena por Zlatko Burić, que desfila com mulheres. Pelo capitão, o roteiro parece nutrir certa simpatia, ao contrário dos demais personagens, a quem só é relegado desprezo e, no máximo, condescendência.
Antes de tudo, literalmente, naufragar, é exposta toda a miséria humana dessa gente que parece planar acima dos demais, afogando-os no lodo que o corpo humano é capaz de produzir. É um dos momentos de virada da narrativa, sublinhado pela passagem da música clássica para o rock pesado.
O constrangimento aparece como linguagem típica da leitura cínica que o diretor elege, salpicada por quadros humorísticos que visam a explicar o nascimento de uma sociedade calcada no poder e na hierarquia, que logo dá vazão ao roubo e à prostituição.
É quando toma a cena a filipina Abigail, vivida por Dolly de Leon e, no início do filme, apenas uma camareira do navio de luxo. Se não traz nada de inédito, o longa vem bem a calhar num tempo em que a abissal desigualdade parece ter sido assimilada como algo inescapável à nossa vida...