Foi com um samba racista, machista e misógino que Germano Mathias venceu o concurso de calouros “À Procura de Um Astro”, promovido pela Rádio Tupi de São Paulo. A honraria concedida a ele dá a medida dos costumes da época. O ano era 1955. Diz a letra: “Êta nega tu é feia/ Que parece macaquinha/ Olhei pra ela e disse/ Vai já pra cozinha/ Dei um murro nela/ E joguei ela dentro da pia”.
Com um andamento sincopado, no ritmo de uma tampa de lata que ele batucava incessantemente, Germano Mathias, morto nesta quarta (22) aos 88 anos, vítima de uma pneumonia, criou o seu estilo. “Minha Nega na Janela”, apesar de todos os inconvenientes, permaneceu como o seu grande sucesso...
Dois anos depois, ele levou o Troféu Roquette Pinto, o mais cobiçado do período, na categoria revelação masculina, enquanto Maysa, de estilo diametralmente oposto, foi eleita a revelação feminina. A cantora exalava melancolia, e Germano Mathias nunca abriu mão do humorismo. A tampa de lata foi sua marca registrada.
Paulistano típico, orgulhoso de sua origem, Germano contava que descobriu o instrumento inusitado numa de suas andanças pela Praça da Sé, quando observou “a batucada, muito bem feita”, dos engraxates do local. Rapidamente, ele se apropriou daquela invenção descompromissada e a tomou para si.
Na capa do LP “Germano Mathias, o Sambista Diferente”, de 1957, ele já empunha a tampa de lata de graxa, com leve sorriso. O álbum foi lançado pela Polydor, logo após o primeiro compacto. Fã de Caco Velho, chamado “sambista infernal”, herdou o ar caricato no palco.
O declínio do cantor começou com a ascensão da Jovem Guarda, que passou a dominar as paradas. “Em Continência ao Samba”, de 1958, já não provocou o mesmo barulho, apesar de sucessos esparsos, como “Guarde a Sandália Dela” e “Senhor Delegado”, cheios do habitual bom-humor do compositor.
Morando no Rio de Janeiro, ele subiu o morro de Mangueira e conheceu, pessoalmente, o lendário Zé Kéti, de quem passou a gravar peças do calibre de “Malvadeza Durão” e “Nega Dina”, que se adaptavam à sua narrativa do malandro que sabia gingar e superar as agruras do dia-a-dia. Em 1959, Germano gravou o LP “Hoje Tem Batucada”, e o single “Malandro de Araque”...
No início da década de 1960, o músico sofreu um revés do destino, quando o empresário alemão que o contratou para uma turnê na Europa morreu um mês antes do embarque. A anedota, cômica se não fosse trágica, parecia diretamente saída de seus sambas, com a vida imitando a arte, numa constatação irônica dos ditados que o cantor proclamava.
Desiludido, Germano Mathias abandonou a carreira e se tornou oficial de justiça, mas não aguentou muito tempo. Ao ser recebido a tiros no cumprimento de um mandado de prisão, saiu-se com esta: “Ser sambista é difícil, mas menos perigoso”. E voltou à antiga profissão. O lançamento da “Antologia do Samba-Choro” escancarou o descaso com Germano.
Dividido com Gilberto Gil, o LP trazia gravações novas do baiano, e reciclava hits do sambista, que sequer foi avisado do lançamento. Sempre com dificuldade, ele passou a alternar períodos fora dos estúdios com gravações dispersas. Em 1968, veio ao mundo o disco que cristalizou o epíteto pelo qual ficaria conhecido: “O Catedrático do Samba”.
Com 34 anos, ele já parecia um veterano, pelo resgate do ritmo de divisão marcante que tanto apreciava, pleno de síncopes, e que remetia a Geraldo Pereira (1918-1955), e pela manutenção da figura do malandro malicioso, que tinha pouco espaço diante dos cabeludos da Jovem Guarda com seus carrões estribados.
O maior tempo que ele passou sem gravar deu-se entre 1973, ano do premonitório “O Catedrático do Samba 2”, com toda pinta de desgaste e resistência, e “História do Samba Paulista”, de 1999, quando dividiu a cena com outros bambas da cidade que Vinicius de Moraes, maldosamente, chamou de “túmulo do samba”.
O retorno não foi com pompa e circunstância, mas o suficiente para manter Germano Mathias em atividade, vez ou outra tendo o seu talento reconhecido por gente das novas gerações.
Sucessor de Geraldo Filme e antecessor dos garotos do Premeditando o Breque, Germano Mathias se punha entre essas duas vertentes que se encontravam na ribanceira, continuamente prestando reverência e homenagem a São Paulo, sua terra adorada que, não obstante, o maltratava, enquanto ele reagia com bom-humor e ironia a esses desmazelos, lançando mão do riso para sobreviver.
Era “samba de maloqueiro”, segundo ele. “Já Foi Meu Carnaval”, de abril de 2022, foi o último ato da folia do músico.