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De Elza Soares a Jair Rodrigues: Ouça músicas que marcaram o Carnaval

A festa mais tradicional do país foi cantada em verso e prosa e já passou por diversos ritmos, com direito a samba, frevo e axé

Foliões aproveitam o Carnaval de Belo Horizonte, que retomou a tradição dos blocos de rua na última década

Hoje é Carnaval. Amanhã ainda é Carnaval. Não porque esteja próxima uma Quarta-feira de Cinzas. Nem porque virou farra o som de buzinas. Mas porque Carnaval está além de data no calendário. É a heroica alegria da bagunça e da patuscada. De se fantasiar e mascarar e perceber o desarrumado cenário belo de fantasias, máscaras e perdidas ilusões brilhantes. No Carnaval, face desordeira da humanidade. Face divertida, bem resolvida, com muito alarde. Se tudo arrumado perde contato com a superfície mais fina de uma mera alegria, não deixe de brincar no Carnaval.

“O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” (samba-enredo, 1967) – Batista da Mangueira, Darcy da Mangueira, Luiz, Dico, Jurandir e Hélio Turco

Em 1967, a pioneira Elza Soares tornou-se a primeira mulher a puxar um samba-enredo na avenida, com “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, de autoria de Batista e Darcy da Mangueira, Hélio Turco, Jurandir, Luiz e Dico. Como diz o bloco criado por ela própria, “Deu a Elza” na avenida! A música também foi gravada por Eliana Pittman, Beth Carvalho, Rosemary e outras cantoras de prestígio, mantendo a sua força junto a foliões de várias gerações!

“Orgulho de Um Sambista” (samba, 1973) – Gilson de Souza

Gilson de Souza é um desses autores de samba cuja importância para a música brasileira merece ser reavaliada. Basta dizer que são dele sucessos como “Pôxa”, redescoberto por Zeca Pagodinho, e “Orgulho de Um Sambista”, lançada em 1973 por Jair Rodrigues. A letra exalta as qualidades do Carnaval, em meio a um desencontro amoroso, com a magnífica interpretação de Jair Rodrigues, um dos grandes cantores da música brasileira, patrimônio nacional.

“Aquele Abraço” (samba de carnaval, 1969) – Gilberto Gil

Logo no início de “Aquele Abraço”, Tim Maia aproveita para dedicar a canção a Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso. Um dos grandes sucessos da obra de Gilberto Gil, essa música em homenagem ao Carnaval e às belezas do Brasil foi regravada pelo cantor Tim Maia, com toda a potência da sua voz, e ampliou ainda mais o sucesso. A canção, cheia de esperança, era uma espécie de despedida de Gil do país, quando ele foi exilado pela ditadura militar no final da década de 1960. Décadas depois, a canção segue entusiasmando foliões...

“País Tropical” (samba de carnaval, 1969) – Jorge Ben Jor

No clima entusiasmado que marca o Carnaval, Jorge Ben compôs uma de suas canções mais populares, mas, na época, a sua felicidade estava ligada ao futebol. Foi para comemorar uma vitória do Flamengo que ele ligou para a namorada, Tereza, que também aparece na letra, e começou a ensaiar os versos da canção, que se tornou uma espécie de emblema nacional. A música “País Tropical” foi lançada no ano de 1969, pelo próprio Jorge Ben Jor, e mereceu regravações de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, além de uma das mais famosas, a de Wilson Simonal. O Carnaval é referido logo no início da letra: “Em fevereiro/ Tem Carnaval/ Tenho um fusca e um violão/ Sou Flamengo/ Tenho uma nega chamada Tereza”, canta Simonal cheio de malícia.

“Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida” (samba de carnaval, 1970) – Paulinho da Viola

Em 1968, a pedido de Hermínio Bello de Carvalho, que escreveu a letra, Paulinho da Viola compôs a melodia para “Sei Lá, Mangueira”, que se tornou uma das mais famosas exaltações à escola de samba de Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e outros sambistas de estirpe. Portelense de coração, Paulinho acabou recebendo críticas e os olhares atravessados de seus colegas de agremiação. Para compensar essa questão, saiu-se com a poesia e a melodia inebriante de “Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida”, para saudar a sua amada Portela. O samba foi lançado em 1970, e fez enorme sucesso, estando, para sempre, ligado ao Carnaval. A música recebeu regravações de Elizeth Cardoso, Jair Rodrigues, Dóris Monteiro, Miltinho, e etc.

“Atrás do Trio Elétrico” (frevo, 1971) – Caetano Veloso

Em 1971, Caetano Veloso resolveu abordar o Carnaval e lançou um compacto duplo, que trazia dois futuros sucessos de sua carreira: “Atrás do Trio Elétrico” e o frevo “Chuva, Suor e Cerveja”. O primeiro era uma exaltação à alegria e à felicidade do Carnaval e da multidão nas ruas da Bahia. A música arrastou multidões pelas ruas do Brasil, especialmente na Bahia e em Pernambuco, e resgatou, para a música popular brasileira, um dos ritmos mais tradicionais de sua história, justamente o frevo pernambucano. Sucesso atemporal do cantor...

“Exaltação a Tiradentes” (samba-enredo, 1949) – Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado

“Exaltação a Tiradentes” nasceu de um sonho do sambista Mano Décio da Viola, que agregou, aos versos recebidos durante a noite, outros propostos por Estanislau Silva e Penteado. Antes da consagração, Décio e Silas de Oliveira haviam oferecido três sambas com o mesmo tema para a Escola de Samba do Império Serrano. Passada a frustração, a música foi cantada na avenida em 1949, mas só chegou ao disco em 1955, na gravação de Roberto Silva. Outros intérpretes não menos tarimbados a registraram posteriormente, dentre os quais Jorge Goulart, com seu vozeirão, e a irrepreensível Elis Regina, além de Maria Creuza, Cauby Peixoto e Mestre Marçal. Pioneiro, como o seu inspirador, é considerado o primeiro samba-enredo a ultrapassar os limites carnavalescos.

“A Corda e a Caçamba” (samba, 1972) – Adeílton Alves e Délcio Carvalho

“Esperanças Perdidas” é um desses sambas rebatizados pela sabedoria popular. Assim nomeado pela dupla de compositores formada por Adeílton Alves e Délcio Carvalho, ele ganhou, na boca do povo, o nome de “A Corda e a Caçamba”, graças a seu refrão envolvente, sublinhado por uma bateria típica de escola de samba, que prepara terreno para o apogeu da folia carnavalesca. A música foi lançada, em 1972, pelo conjunto Os Originais do Samba, que contava, entre seus integrantes, com o comediante Mussum, sucesso no grupo Os Trapalhões. Curiosamente, Os Originais alcançaram fama com outra música rebatizada pelo povo: “Reunião de Bacana” virou “Se Gritar, Pega Ladrão!”. Fato é que ambas as composições mantêm essa força e a atualidade.

“Retalhos de Cetim” (samba de carnaval, 1973) – Benito Di Paula

“Retalhos de Cetim” foi a canção que catapultou a carreira de Benito Di Paula e, até hoje, é uma das mais populares, não apenas de seu repertório, mas da música brasileira. Muita gente que nunca ouviu falar em Benito Di Paula conhece essa canção, seja de ouvido ou cantando em festas e bares. Aqui, o compositor consegue um feito curioso. Embora a ação da letra se passe em pleno Carnaval, a história é triste, de decepção, fato raríssimo nas canções que mencionam a folia mais popular do país. Apesar disso, a melodia induz a plateia a cantar a plenos pulmões, solidarizando-se com a história do protagonista, abandonado por sua cabrocha em pleno Carnaval. “Retalhos de Cetim” contabiliza quase 80 regravações, de Lobão a Cauby Peixoto e Alcione.

“Pombo-Correio” (frevo, 1977) – Moraes Moreira, Dodô e Osmar

Em 1975, apaixonado pela composição instrumental “Double Morse”, de Dodô e Osmar, e que existia desde a década de 1950, Moraes Moreira compôs para ela uma letra que se relacionava com o romantismo de antigas composições carnavalescas, como “Colombina” e “Jardineira”, na qual pedia a um pombo- correio que entregasse uma carta a seu amor. Assim nascia o frevo “Pombo-Correio”, primeiro sucesso em nível nacional do Trio Elétrico Dodô e Osmar, que batizou o seu quarto LP, lançado em 1977. Saltitante, elétrica, a música é característica dos trios que animam o Carnaval de Salvador, e que se tornariam uma influência na música do próprio Moraes Moreira, que, além de produzir discos, foi o primeiro cantor de trio elétrico do país, antes apenas instrumentais.

“Coisinha do Pai” (samba, 1979) – Jorge Aragão, Almir Guineto e Luiz Carlos da Vila

O famoso samba do Cacique de Ramos revelou ao Brasil vários nomes que se consagraram na música brasileira, graças ao olhar atento de Beth Carvalho, que se tornou madrinha do movimento. Foi desta forma que, em 1979, ela descobriu o samba “Coisinha do Pai”, próprio para a folia carnavalesca, com sua animação impossível de ser detida. Composta por Jorge Aragão, Almir Guineto e Luiz Carlos da Vila, que depois sairiam em carreira-solo, a canção foi lançada por Beth Carvalho no álbum “No Pagode”, que vendeu milhões de cópias, certamente com a contribuição de “Coisinha do Pai” que, literalmente, se tornou um hit planetário. Tanto que a canção foi escolhida pela NASA para ser enviada à Marte, com o intuito de despertar um robô do “sono”. Funcionou.

“Balancê” (marcha, 1936) – Braguinha e Alberto Ribeiro

A marchinha “Balancê” é a primeira das grandes gravações de Gal Costa que serviu de trilha sonora para o Carnaval brasileiro pré-axé music. A regravação do sucesso de Braguinha e Alberto Ribeiro, lançado por Carmem Miranda em 1936, foi o grande sucesso da folia de 1979. Era o ponto alto do show de maior sucesso comercial de Gal, “Gal Tropical”, que ficou um ano em cartaz. “Quando por mim você passa/ Fingindo que não me vê/ Meu coração quase se despedaça/ No balancê, balancê”, dizem os versos contagiantes da canção. Braguinha voltava a reinar no Carnaval brasileiro, e graças aos agudos de Gal.

“Disputa de Poder” (samba-enredo, 1988) – Almir Araújo, Marquinho Lessa, Hércules Corrêa e Balinha

Simone teve a sua história ligada aos sambas-enredos desde 1983, quando gravou o grande sucesso “O Amanhã”, da União da Ilha. Essa conexão prosseguiu nos anos seguintes, com a cantora participando de disco de Neguinho da Beija-Flor, e, posteriormente, regravando outro sucesso do Carnaval, “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas Sobre Nós”. Mas foi em 1988 que ela literalmente estreou na avenida, quando ajudou a escola de samba Tradição a puxar o samba “Disputa de Poder”, de Almir Araújo, Marquinho Lessa, Hércules Corrêa e Balinha. E a canção é recheada de críticas à política.

“Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira” (samba, 1979) – Moraes Moreira e Pepeu Gomes

Foi uma frase de João Gilberto que inspirou o título do esfuziante samba “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira”, de Moraes Moreira e Pepeu Gomes. A dupla dos Novos Baianos recebeu certo dia a visita do Papa da Bossa Nova no sítio aonde eles viviam em comunidade com os demais integrantes do grupo. A música invoca o Carnaval, seja em sua riqueza rítmica, com um instrumental de primeira que comanda a gravação, seja na própria letra, repleta de nuances como a ladeira citada no título. “Na sua escola é a passista primeira/ Lá vem o Brasil descendo a ladeira”, saúdam os autores. A música foi gravada por Moraes Moreira, que afirmava ser um sambista baiano, com tendência para a alegria. Em 1979, ganhou versão definitiva na voz poderosa de Baby do Brasil.

“Tristeza, Pé no Chão” (samba, 1973) – Armando Fernandes

Clara Nunes começou a experimentar o sucesso nacional quando passou a cantar sambas, já morando no Rio de Janeiro. No entanto, foi no Festival de Juiz de Fora, voltando ao Estado de nascimento, Minas Gerais, que a cantora apresentou pela primeira vez ao público o que seria um dos maiores sucessos da sua carreira. O ano de 1973 seria de grandes realizações. Além de excursionar por Portugal e apresentar-se em Lisboa, Clara participou do show “O Poeta, a Moça e o Violão”, ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho. No entanto a música que marcaria essa fase da carreira seria “Tristeza, Pé no Chão”, um samba de Armando Fernandes, e que embalou o Carnaval de 1973.

“Eu Também Quero Beijar” (axé, 1981) – Pepeu Gomes, Moraes Moreira e Fausto Nilo

Com o fim dos Novos Baianos, Pepeu Gomes partiu para a carreira-solo, mas reencontrou antigos companheiros, como Moraes Moreira e o compositor Fausto Nilo, que o auxiliaram a compor o primeiro grande sucesso dessa nova fase. “Eu Também Quero Beijar” lança mão de todos os elementos dançantes e rítmicos do axé para criar uma canção que gruda facilmente na cabeça e incita as pessoas a dançarem. Aliado a isso, a famosa guitarra baiana de Pepeu, inconfundível, dita o ritmo da canção, que fez muito barulho ao ganhar a boca do povo, em 1981. Para completar, marcava um novo momento do Carnaval brasileiro, mais ligado ao movimento baiano do axé, que se espalhou pelo Brasil como um turbilhão. E “Eu Também Quero Beijar” embalou muitos foliões.

“O Que É O Que É” (samba, 1982) – Gonzaguinha

Quando lançou o otimista samba “O Que É O Que É”, Gonzaguinha estava no momento mais feliz e pleno de sua carreira. Na ocasião, ele abandonara por completo a fama de “cantor-rancor” do início da carreira, embora sem deixar de tocar nas feridas sociais do país, mas com mais sutileza; se reconciliara com o pai, o Rei do Baião, Luiz Gonzaga, e mantinha acesa a esperança de um Brasil mais justo e solidário, com a perspectiva do fim do regime militar. Foi nesse clima de exaltação e alegria que “O Que É O Que É” foi lançada, em 1982, se tornando, posteriormente, uma música quase obrigatória em eventos festivos, incluindo o Carnaval, por seu poder de síntese sobre a necessidade de celebrar a existência. E a música se transformou no maior hit de Gonzaguinha.

“Suor no Rosto” (samba de carnaval, 1983) – Jorge Aragão, Dida e Nilton Barros

O bloco carnavalesco Cacique de Ramos tinha, entre seus integrantes mais aficionados, o trio formado por Jorge Aragão, Dida e Nilton Barros, que compuseram juntos o samba “Suor no Rosto”. Lançada por Beth Carvalho, a canção logo se tornou um clássico do repertório da cantora, e foi fundamental para o sucesso do disco de mesmo nome, lançado em 1983, que, não por acaso, trazia na capa a imagem de Beth em meio a confetes e serpentinas. O recado era claro como os versos do samba. Outro sucesso de Beth Carvalho...

“Vai Passar” (samba, 1984) – Chico Buarque e Francis Hime

Um dos maiores clássicos de Chico Buarque só foi concluído no estúdio, em cima do laço da gravação. Chico estava envolvido com a peça “Dr. Getúlio”, de Dias Gomes e Ferreira Gullar, para a qual compunha a trilha sonora, quando começou a nascer o samba “Vai Passar”. A ideia inicial era dividir a canção com um grupo de compositores, na linha dos sambas-enredos, mas ela acabou no colo de Francis Hime, que a tomou para si com toda a capacidade melódica. Com versos de exaltação, “Vai Passar” é um prenúncio do fim da ditadura militar, e chegou à praça um ano antes da derrocada final do regime, em 1984. “O estandarte do sanatório geral vai passar...”, dizem alguns dos versos mais empolgantes. Lançada por Chico em 1984, ela foi regravada por Francis Hime.

“O Canto da Cidade” (axé, 1992) – Tote Gira e Daniela Mercury

Identificado com os blocos afro-baianos de Salvador, o compositor Tote Gira criou “O Canto da Cidade” para exaltar a sua relação com o Carnaval da Bahia e a força dessa manifestação cultural junto à história do povo negro. A música chegou às mãos de Daniela Mercury, que realizou ajustes na letra a fim de torna-la mais universal, sem perder a essência negra e baiana. Assim, em 1992, esse axé potente deu título ao disco lançado por Daniela, e que a tornou uma estrela nacional. Pouco antes do lançamento, a cantora baiana realizou uma histórica apresentação no vão do MASP, em São Paulo, que parou o trânsito da capital e abalou as estruturas do Museu de Arte. “O Canto da Cidade” é, até hoje, um dos grandes sucessos do Carnaval, e em todo o Brasil.