A histórica classificação da seleção de Marrocos sobre a Espanha, nos pênaltis, em partida válida pelas oitavas de final da Copa do Mundo de 2022 disputada no Catar, abre à lembrança o fato de que o país e a cultura árabe também já foram cantados em verso e prosa pelos compositores brasileiros, dentre eles Caetano Veloso, que citou nominalmente Marrakesh, histórica cidade marroquina, na letra de “Qualquer Coisa”, um de seus maiores sucessos, lançado em 1975. Mas o baiano tropicalista não ficou sozinho, e recebeu a companhia de João Bosco, Arnaldo Antunes, Nássara, Djavan, e etc.
“Lenda Árabe” (canção, 1937) – Osvaldo Santiago e Paulo Barbosa
A sensualidade dá o tom do início ao término da canção “Lenda Árabe”, composta, em 1937, por Paulo Barbosa e Osvaldo Santiago, e lançada por Carlos Galhardo, que a regravou na década de 1950. A música se vale da ambiência de lendas provindas dos países do Oriente Médio, como “As Mil e Uma Noites”, e não economiza na descrição de sua musa.
“Toda nua a favorita/ A dança começou/ E um escravo para ela um olhar então ousou/ Por castigo o Sultão raivoso o fez cegar/ E ele desde então em prece vive a clamar”. Outro ponto interessante é que a sensualidade se une à religiosidade.
“Alá Lá Ô” (marchinha de carnaval, 1941) – Nássara e Haroldo Lobo
O folião Haroldo Lobo, apelidado de clarinete por sua voz agudíssima, era, segundo o amigo Antônio Nássara, “fabuloso”. E tinha razão de ser. Criador de inúmeras marchinhas que se tornaram parte integrante da memória carnavalesca, ele pediu para o caricaturista completar uma despretensiosa composição do ano anterior.
Como não podia deixar de ser, a música era em ritmo de festa e euforia e destacava versos que falavam de sol e caravana. Para isso, Nássara unificou uma divindade árabe a um conhecido cartão postal africano, o deserto do Saara. Pronto, dali para Haroldo arrematar com o refrão entusiasmado foi um pulo: “Alá lá ôôô, mas que calor, ôôô…”.
Faltavam agora os arranjos e a orquestração, definidos com maestria e alta categoria por ninguém menos que Pixinguinha. Nas palavras de Nássara: “Pixinguinha tinha dividido a melodia em compassos marcantes, saltitantes, brejeiros, originais, vestindo-a com roupagem da alma popular. E eu tive uma sorte danada porque ‘Alá Lá Ô’ ficou sendo uma das músicas mais tocadas no Carnaval. Das que fiz, foi a única que me rendeu alguma coisa”. A música, gravada por Carlos Galhardo em novembro de 1940, foi lançada no Carnaval de 1941. Virou sucesso permanente.
“Agnus Sei” (MPB, 1972) – João Bosco e Aldir Blanc
Poderia ser um choro clássico, dada a velocidade imprimida à música, não fosse a assinatura singular da dupla João Bosco e Aldir Blanc. “Bala com Bala” é, até hoje, um desafio para qualquer intérprete, encarado com domínio e desenvoltura por ninguém menos do que Elis Regina, que lançou a canção em 1972, no LP “Elis”. Naquele mesmo ano, Bosco e Blanc estrearam a parceria com “Agnus Sei”, gravada na primeira edição do Disco de Bolso, semanário do jornal O Pasquim que, do outro lado, trazia simplesmente “Águas de Março”, de Tom Jobim. Nessa canção, a dupla faz uma referência aos minaretes, que são as torres das mesquitas. O mais alto minarete do mundo pertence ao Marrocos.
“Qualquer Coisa” (tropicalista, 1975) – Caetano Veloso
De maneira bastante enviesada, como era habitual na Tropicália, movimento capitaneado na música por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, dentre outros, o baiano de Santo Amaro, irmão de Maria Bethânia, presta uma homenagem aos povos árabes que deixaram, em terras brasileiras, ditados que se acoplaram à linguagem, e se tornaram, pela própria natureza, muito populares.
Este recurso é facilmente notado quando Caetano mistura e reinventa frases, partindo do pressuposto do próprio movimento onde sua música está inserida, a tal antropofagia, a formação mestiça de toda a nação brasileira. “Esse papo já tá qualquer coisa, você já tá pra lá de Marrakesh, mexe qualquer coisa dentro doida, já qualquer coisa doida dentro mexe…”, diz ele, citando a cidade marroquina conhecida por suas ruas labirínticas, desertas.
“Nu com a Minha Música” (MPB, 1981) – Caetano Veloso
Em 1981, Caetano Veloso lançou o disco “Outras Palavras”, com músicas como “Lua e Estrela”, de Vinícius Cantuária, “Verdura”, de Paulo Leminski, “Jeito de Corpo” e “Rapte-me Camaleoa”. Também se destacava nesse repertório a delicada “Nu com a Minha Música”, anos depois regravada por Marisa Monte e Rodrigo Amarante. Em 2021, ao completar 80 anos, Ney Matogrosso escolheu a música para intitular o seu álbum comemorativo. A certa altura da canção, Caetano aborda religiosidades e lança mão da expressão “salamaleico”, versão aportuguesada de uma saudação árabe que significa “que a paz esteja sobre vós”. Instrumentos árabes surgem no arranjo...
“Nem Um Dia” (MPB, 1995) – Djavan
Com uma dialética e expressão muito particulares, Djavan causou furor logo em seu aparecimento no cenário da música popular brasileira. Ao emendar um sucesso atrás do outro uniu o calor do público ao reconhecimento da crítica. “Lilás” dá nome a um dos mais incensados álbuns de sua carreira fonográfica, lançado em 1984. A música tem o tradicional ritmo sonoro e verbal do artista, com ilusões indiretas e palavras soltas pelo ar. Já consagrado na música brasileira, o artista alagoano lançou, em 1995, a música “Nem Um Dia”, delicada peça de seu repertório, e que emula “toda riqueza dos sheiks árabes”.
“Inclassificáveis” (rock, 1996) – Arnaldo Antunes
Arnaldo Antunes encerra a discussão teórica sobre a denominação racial do povo brasileiro com sua poesia concreta. No ano de 1996, em rock que por si só explica a conversa. “Inclassificáveis” é o nome da canção lançada no álbum “O Silêncio”, e regravada por Ney Matogrosso em 2008, quando usou a música para intitular seu disco.
Arnaldo parte das três raças que inicialmente mestiçaram e mistificaram o Brasil, “preto, branco e índio”, para alcançar a gama de culturas e cores que resultou desse congraçamento, “mulatos, mestiços, cafuzos, pardos, mamelucos” até os inventados pelo próprio autor “crilouros, guaranisseis, judárabes, orientupis”, e expressões populares cunhadas pelo povo, “sararás e caboclos”, dentre muitos outros.
O arremate de Antunes é certeiro e não deixa dúvidas, ou melhor, abre espaço para perguntas, questionamentos, respostas, culturas… “Somos o que somos, somos o que somos, inclassificáveis, inclassificáveis…”.
“Nossa Bagdá” (MPB, 2004) – Péricles Cavalcanti
Os mistérios orientais da literatura árabe, sua cultura e sua música, também fascinam Péricles Cavalcanti e se fazem notar, de alguma maneira, em sua obra aberta e cosmopolita, sedenta pelo contemporâneo. Desta forma, ele une as pontas entre presente e passado para conceber uma canção que mantém os olhos abertos sobre o futuro. “Nossa Bagdá” tem pegada romântica, mas não se atém a ela, indo muito além. A canção foi lançada por Péricles Cavalcanti em 2004, e chamou a atenção de Arnaldo Antunes, que a regravou em 2006, no disco “Qualquer”. Já Iara Rennó voltou a essa pérola no ano 2013.