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Paulinho da Viola intérprete: músico gravou de Noel Rosa a Chico Buarque

Além de compositor fora de série, ele também se revelou um cantor de canções alheias que revelava belezas escondidas

Paulinho da Viola ao lado do compositor Elton Medeiros e sua inseparável caixinha de fósforos na gravação de ‘Samba na Madrugada’

Batatinha, sambista baiano autor de escassos sucessos, sem com isto perderem a relevância, condecorava com honra e merecimento Paulo César Batista Faria o Ministro do Samba, na música “Ministério do Samba”. Não sem razão diagnosticava-o vindo de linhagem nobre, filho de César Faria, lendário violonista do conjunto de choro Época de Ouro, idealizado por Jacob do Bandolim.

Mas o tempo inoculável no qual navega o mar, e que ele diz ser hoje, tratou de tornar o apelido dado por Sérgio Cabral maior do que qualquer outra referência ao sujeito: Paulinho da Viola, além dos êxitos autorais, também se habituou a registrar versões impecáveis para clássicos de Nelson Cavaquinho, Cartola, Noel Rosa, e tantos outros, que ele sempre reverenciou...

“Não Quero Mais Amar a Ninguém” (samba, 1936) – Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda

Com o sucesso da escola de samba da Mangueira, Cartola se tornou conhecido de figuras famosas como os cantores do rádio Mário Reis e Francisco Alves, o sambista e poeta da Vila, Noel Rosa e o maestro Heitor Villa-Lobos. No ano de 1936, sua música “Não Quero Mais Amar a Ninguém”, em parceria com o amigo Carlos Cachaça e o bamba Zé da Zilda, recebeu prêmio no desfile da escola, e um ano depois foi gravada por Aracy de Almeida. Mestre de harmonia da Estação Primeira, Cartola vendia seus sambas, mas não abria mão da autoria.

Por essa época, ele uniu seus trapos com Deolinda, uma mulher mais velha, casada e com uma filha. Vizinha de Cartola, Deolinda o ajudava quando estava doente, e aos poucos o carinho que nutria foi se transformando em outro sentimento. Os dois resolveram morar juntos em um barraco com lugar para a filha e o pai de Deolinda. Com o passar do tempo, a casa passou a receber mais moradores, e um dos mais constantes era justamente Noel Rosa, nas noites em que tomava porres homéricos ao lado de Cartola.

Por uma triste ironia do destino, os anjos do morro levaram Deolinda para longe do menino que ela aprendeu a cuidar e a amar, e a música que ele havia composto para o Carnaval simbolizava agora o início de sua longa quarta-feira de cinzas. Cartola estava indo embora de Mangueira, desiludido com a vida e com o samba, e sentenciava: “Não quero mais amar a ninguém/ Não fui feliz, o destino não quis/ O meu primeiro amor/ Morreu como a flor, ainda em botão/ Deixando espinhos que dilaceram meu coração…”.

“Pra Quê Mentir?” (samba, 1939) – Noel Rosa e Vadico

Caetano Veloso se traveste de mulher para responder ao samba lamentoso de Noel Rosa. É a mulher que se defende das acusações do homem e apela à ele que respeite sua condição, sua dor e sua delícia. Apela a ele para que a deixe em paz, não mais a olhe, não a procure, não fale com ela, cale a boca e siga o seu caminho, pois ela fará o mesmo.

É a mulher que pede ao homem que ele deixe a verdade fria das palavras e encare a mentira quente e contundente da vida. A mentira que norteou todo o amor entre os dois e que agora os separa de vez. É a mulher que apela ao homem para que ele a entenda. Entenda seus motivos mais loucos e não a julgue. Pra quê mentir? Se tu ainda não tens esse dom de saber iludir... Paulinho da Viola regravou uma linda versão do samba...

“Nervos de Aço” (samba, 1947) – Lupicínio Rodrigues

Após seis anos de romance, Iná decidiu abandonar Lupicínio Rodrigues. Magoado, o compositor criou o samba “Nervos de Aço”, lançado por Francisco Alves, em 1947. Mas fica claro que Iná tinha razão. Durante todo esse tempo, Lupicínio não se decidia a casar, enrolando a moça. Aliás, ele só contraiu matrimônio em 1949, ao desposar Cerenita, que conhecia desde criança, mas que não via há 15 anos. Na verdade, ele já havia se casado com uma moça chamada Juraci, que, no leito de morte, lhe pediu que se casasse para legalizar a situação da filha que tiveram. Cerenita acabou adotando a menina, que daria cinco netos ao casal. Já “Nervos de Aço” ganharia a voz de Paulinho da Viola.

“Meu Mundo É Hoje” (samba, 1959) – Wilson Batista e José Batista

As margens sempre interessaram a Wilson Batista, por ser ele próprio, parte integrante delas. Por isso em seus sambas retratam-se comportamentos dos ditos inadequados, de gente simples, posta de canto. “Chico Brito”, de 1949, em parceria com Afonso Teixeira, é o herói dos pequenos que se deteriora em razão de maus tratos. Afinal “se o homem nasceu bom, e não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou.” Não por acaso, é feita a primeira referência à maconha na música brasileira. Registrada por seu autor, foi lançada por Dircinha Batista, e regravada por Paulinho da Viola, que também deu voz a “Meu Mundo É Hoje”, parceria de Wilson com José Batista. Clássico!

“Sonho de Um Carnaval” (samba, 1966) – Chico Buarque

Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda –, o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo. Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais, alinhavando parcerias com nomes como o poeta Vinicius de Moraes, o maestro Tom Jobim, o dramaturgo Ruy Guerra e o tropicalista Gilberto Gil, além de outros compositores de peso, tais como Milton Nascimento, Francis Hime e Edu Lobo. Em 1966, Chico lançou “Sonho de Um Carnaval”, lindamente regravada por Paulinho da Viola, no LP “Nervos de Aço”.

“Lenço” (samba, 1971) – Monarco e Chico Santana

Em 1956, Monarco teve a sua primeira música lançada em disco pela voz do cantor Risadinha, que gravou “Vida de Rainha”, uma parceria com Alvaiade. Tempos depois, em 1971, chegou o primeiro sucesso de fato, com o registro de Paulinho da Viola para o samba “Lenço”, de Monarco e Chico Santana. A composição logo se tornou um dos grandes clássicos da obra de Monarco, com melodia inspirada e uma letra de desamor resignado, em que o protagonista desiste do sentimento para não sofrer mais. “Lenço” ganhou regravações de Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Leila Pinheiro e da Velha Guarda da Portela.

“Depois da Vida” (samba, 1971) – Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Paulo Gesta

Com uma religiosidade fervorosa, o bamba Nelson Cavaquinho tinha na relação com a morte uma das suas principais inspirações. Alguns clássicos saíram dessa obsessão, como “Rugas”, “Luz Negra”, “Folhas Secas” e “Juízo Final”. A mais pitoresca, no entanto, certamente é “Depois da Vida”. Parceria com Guilherme de Brito e Paulo Gesta (parceiro de Ataulfo Alves em “Na Cadência do Samba”), “Depois da Vida” foi lançada por Paulinho da Viola em 1971. Para se aclimatar ao ambiente fúnebre da canção, Paulinho criou um arranjo sombrio, como se um vento uivante lentamente se aproximasse de nossos ouvidos com sua nostalgia. Tinhorão escreveu que, “o arranjo, cretino, parece barulho de móvel arrastando”, e esculhambou essa versão de Paulinho.

“Falso Moralista” (samba, 1972) – Nelson Sargento

Nelson Sargento é dono de um divertido samba intitulado “Triângulo Amoroso”, de 1979, que já dava pistas de seu viés para cronista das complexas relações conjugais: “É um triângulo amoroso/ Funcionando com perfeição/ Uma me domina, a outra me fascina/ Mas as duas têm meu coração”. Antes, em 1972, Paulinho da Viola gravara “Falso Moralista”, que também desafiava os padrões com bom-humor.

Na introdução do samba, gravado no emblemático álbum “Dança da Solidão”, Paulinho chama os percussionistas um a um, antes de proclamar: “Tudo isso pra cantar um samba do Nelson Sargento”, reforçando o seu respeito pelo mestre, de quem, em 1971, gravara “Minha Vez de Sorrir” (parceria com Batista). Em “Falso Moralista”, Nelson Sargento dispara, sem dó, contra a hipocrisia: “Você se julga um tanto bom e até perfeito/ Por qualquer coisa deita logo falação/ Mas eu conheço bem o seu defeito/ E não vou fazer segredo não…”.

“Mente ao Meu Coração” (samba, 1976) – Francisco Malfitano

Francisco Malfitano nasceu em Peruíbe, no interior de São Paulo, no dia 31 de julho de 1915, e morreu no dia 24 de janeiro de 2011, aos 95 anos. Compositor, Francisco Malfitano teve músicas lançadas por Aracy de Almeida e Silvio Caldas. O seu maior sucesso, “Mente ao Meu Coração”, foi gravado por Elizeth Cardoso, Paulinho da Viola e Vânia Carvalho.

Em 1943, ele se casou e deixou a música. “Mente ao Meu Coração” permanece como um dos grandes clássicos da música popular brasileira e prova inconteste do talento do compositor Francisco Malfitano. “Mente ao meu coração/ Mentiras cor-de-rosa/ Que as mentiras de amor não deixam cicatrizes/ E tu és a mentira mais gostosa/ De todas as mentiras que tu dizes...”, sugere em alento o refrão do hit.

“Coração Oprimido” (samba, 1979) – Walter Alfaiate e Zorba Devagar

Os sambas sincopados de Walter Alfaiate, com mensagens ora românticas e conservadoras, outrora engraçadas e irreverentes, logo chamaram a atenção da plateia. Quem primeiro o descobriu foi Paulinho da Viola que, na década de 1970, registrou três sambas de sua lavra: “Coração Oprimido” (com Zorba Devagar), “A.M.O.R. Amor” e “Cuidado, Teu Orgulho Te Mata”, as duas últimas feitas com Mauro Duarte (1930-1989), seu parceiro mais frequente. A dupla se conhecia desde 1947. Na ocasião, se encontraram no campo do Fluminense, nas Laranjeiras, e iniciaram uma intensa amizade.