“Como assim, gente, não tem? Então nós vamos fazer”. Essa foi a decisão de Aline Calixto diante da surpresa de constatar que não havia conteúdo musical relacionado às entidades e aos orixás para as crianças, a despeito da contribuição dos povos africanos na formação étnico-social e na fundação cultural do Brasil.
Junto à maternidade, nasceu, para a cantora, o projeto “Pontinhos de Amor”, cuja turnê ela estreia neste sábado (17) em Belo Horizonte, a partir do álbum infantil lançado em 2021. “Quando eu me torno mãe, outros universos se abrem para mim e aí eu resolvi criar esse repertório não só para o meu filho, mas para todas as crianças, independentemente se elas são da religião ou não”, observa Aline.
Família. Embora voltado aos pequenos, ela deixa claro que o projeto tem o poder de abranger toda a família, a exemplo do que já aconteceu na música brasileira com “A Arca de Noé”, baseado em poemas de Vinicius de Moraes na década de 1980, e dos trabalhos arquitetados por Adriana Calcanhotto sob o heterônimo de Adriana Partimpim nos anos 2000.
“Esse trabalho de fato tem um nicho que é o público infantil, mas é óbvio que nós precisamos dos adultos para acompanhar as crianças e a temática que envolve as canções vai além, porque muitas pessoas não conhecem a mitologia dos orixás”, atesta.
Compositora. Aline assina todas as faixas do álbum, dentre elas uma parceria com Sérgio Pererê e outra com Déa Trancoso, no caso “Vento Bailarino”, que insinua batidas de funk. A direção musical ficou a cargo de Thiago Delegado, parceiro de longa data. Já a sensível ilustração da capa é de Salamandra, artista de Salvador. Outro atrativo do espetáculo é a cenografia e os bonecos criados por Bia Apocalypse, do Grupo Giramundo.
“Meu processo de composição é bastante intuitivo, dificilmente eu paro naquele segundo e falo: ‘hoje eu preciso escrever a música tal’. Não, deixo fluir e realmente vem melodia, às vezes vem letra, ás vezes vem melodia e letra, eu deixo sentir, deixo aberto, a energia flui e as canções chegam”, conta. Em “Festa no Aiyê”, que fecha o álbum, Aline se porta, literalmente, como uma contadora de histórias.
Preconceito. “A gente vive momentos muito complexos e difíceis, onde a intolerância religiosa tem crescido muito, e trazer essa temática, que envolve não só religiosidade, mas a nossa cultura e nossa história, tem uma importância fundamental no sentido de transmissão, de levar o conhecimento para todos aqueles que queiram saber um pouquinho mais, e aí a gente desmistifica a história, retira os preconceitos e mostra a coisa como ela realmente é”, destaca.
O batismo do álbum é uma referência aos pontos de umbanda, utilizada no diminutivo, já que as crianças são a prioridade do disco. “Na umbanda a gente canta muito, a gente se utiliza muito das cantigas, e esses cantos são chamados de pontos. Estamos celebrando os orixás e as entidades com amor”, explica, com a didática de uma professora.
Universo. “Pontinhos de Amor” agrega, ao todo, 15 faixas, como “Saravá Vovô, Saravá Vovó”, “Pulando com os Caboclos”, “O Dono do Arco-Íris”, “Ela Mora na Cachoeira”, “A Sereia do Mar”, dentre outras, com uma qualidade que alça Aline às melhores do gênero, sem subestimar os pequenos, com letras espertas e uma musicalidade envolvente.
Versada no universo do samba, a carioca de nascimento que adotou Minas como sua terra ganhou projeção nacional desde que “Flor Morena”, de Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Júnior Dom, estourou na novela “Fina Estampa”, há dez anos. Se ali ela sentiu um abalo sísmico, não foi nada comparado à maternidade.
Mudanças. “A partir do momento que você está grávida e opta por ir em frente com a gestação, você virou mãe, e aí muda tudo mesmo, não apenas mudanças físicas e hormonais como a própria percepção do mundo e a maneira como as pessoas te veem”, pontua. Em alguns momentos, Aline se sentiu assustada com as mudanças, especialmente no exercício da profissão.
“A gente cai num espaço de certas limitações que o mercado te coloca, eu estou falando isso dentro da música, mas acho que acontece em todos os campos da atividade humana. A gente se sente deixada de lado, porque temos prioridades enquanto mãe, da mesma forma que um homem deveria ter prioridades em relação ao seu filho enquanto pai. Só que esse peso recai muito sobre a mulher, então a sobrecarga é grande demais”, aponta Aline.
Maternidade. “Eu posso dizer que tive a sorte de ter um companheiro que faz o papel dele e que todo pai deveria fazer de dividir a criação de um filho”. Sem romantizar, a artista afirma que a experiência da maternidade é “muito boa, mas não é fácil”, e reforça a necessidade de “se fazer entender para conseguir se encaixar na lógica do mercado, como, por exemplo, estar presente em uma reunião ou entrevista, deixando claro que tem um filho lactante que talvez a faça interromper os trabalhos para atender suas demandas”.
“Isso é normal, isso deveria ser normal, nós somos seres que reproduzem, que têm filhos, então isso tinha que fazer parte do nosso cotidiano em todos os momentos mas, infelizmente, não é assim e eu espero que essa realidade mude e luto para isso”, declara.
Política. Aline também quer mudanças no governo federal. Em maio, durante a passagem do ex-presidente Lula, candidato do PT à presidência da República, por Minas, Aline conduziu o evento em Belo Horizonte, ao lado do rapper Renegado, com um vestido vermelho de dar inveja. Com as eleições deste ano se aproximando, ela tem na ponta da língua o que espera.
“A gente vive um momento muito complicado em nosso país, a atual gestão não conduziu bem em vários momentos, tivemos uma pandemia com ações caóticas, sem falar na nossa economia. Ô gente, a verdade é que eu acho que está tudo muito ‘dançado!’”, desabafa.
“Nós precisamos de mudança e essa mudança não vem com violência, com armas, ela vem com um plano eficiente de economia, saúde para as pessoas, acesso à cultura, educação, é isso que eu acredito e espero que a gente tenha no governo que vai comandar o nosso Brasil”, aposta Aline, com fé nos orixás.
Serviço.
O quê. Estreia da turnê “Pontinhos de Amor”, de Aline Calixto
Quando. Neste sábado (17), às 17h
Onde. Centro Cultural Unimed-BH Minas (rua da Bahia, 2.244, Lourdes)
Quanto. De R$15 (meia) a R$ 30 (inteira) no