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Há 110 anos nascia Luiz Gonzaga, eterno ‘Rei do Baião’ da música brasileira

Cantor e compositor pernambucano levou para todo o Brasil clássicos como ‘Asa Branca’, ‘Xote das Meninas’ e ‘Qui Nem Jiló'

Coroado como ‘Rei do Baião’, Luiz Gonzaga trajou vestes de vaqueiro e levou sua sanfona para todo o Brasil

Quando aquele menino de cabeça achatada e ombros caídos fugiu de casa, no interior de Pernambuco, para servir ao Exército, ninguém imaginava que o que ele faria seria uma verdadeira revolução na música brasileira. Talvez nem mesmo ele. Mas aqueles ombros caídos haviam sido feitos na medida exata para se abrigar uma sanfona, e aquela cabeça achatada tinha sido especialmente escolhida para se usar sobre ela um chapéu de vaqueiro. Mas não um chapéu de vaqueiro qualquer. Era o chapéu de vaqueiro do Rei do Baião.

Em Luiz Gonzaga, aquele chapéu seria uma coroa, aquelas roupas típicas e nordestinas eram os trajes de um rei e aquela sanfona empunhada com rara habilidade era um cetro enfeitado a ouro e pérolas, que por vezes transformava-se em cajado, tal era a beleza e força com que a tocava. Tal era a beleza e a força com que a oferecia a seu povo, para animar suas festas juninas, seus xotes, seus santos, seu São João.

Após ingressar no Exército, Luiz Gonzaga conheceu o sanfoneiro mineiro Dominguinhos Ambrósio, que lhe ensinou as músicas que faziam sucesso no Sul. No entanto, foi quando Gonzaga deu baixa no batalhão que iniciou sua revolução. Depois de experiências frustradas tocando em bares cariocas, o Rei do Baião conheceu o cearense Humberto Teixeira, e inventou com este o ritmo que lhe daria a realeza.

O ano era 1945, e Luiz Gonzaga tornava-se pai duas vezes. Assumia a paternidade do baião ao lado de Humberto Teixeira e a de Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha, ao lado da dançarina e cantora Odaléia. Depois daquele momento, a música brasileira nunca mais seria a mesma. Pois ganhava ao mesmo tempo um novo ritmo e um novo músico que só trariam orgulho ao pai Gonzagão, levando sempre na bagagem sua terra, suas origens, a cultura do Nordeste carregada nos ombros, na cabeça achatada, nas roupas típicas e naquele balanço novo e contagiante que inventara.

A vida de viajante desse revolucionário rei teve 76 anos de andanças e sucessos. Durante sua caminhada, aquele que também ficou conhecido como o “Embaixador Sonoro do Sertão”, passeou com sua sanfona por quase todo o Brasil e por Paris, recebeu disco de ouro e Prêmio Shell, além de várias homenagens em livros e discos.

No entanto, quem mais distribuiu presentes e homenagens foi ele, sempre disposto a ajudar seu povo com seu coração caridoso e imenso. O que fez através da música e também de ações sociais, como a Fundação Vovô Januário, criada na década de 1980 para ajudar as mulheres de Exu, sua terra natal. O Rei do Baião já enxergara desde cedo o poder de sua música que encantou e continua encantando.

Não há comemoração junina em que não se lembre do nome de Luiz Gonzaga. Nem um bom forró, um bom xaxado e um bom baião. Aquele olho dourado, mesmo machucado, continua avistando à distância a Asa Branca do pássaro que canta bem perto da Lua.

“Xamêgo” (xote, 1943) – Luiz Gonzaga e Miguel Lima

De origem humilde, Carmen Costa trabalhava como empregada doméstica na casa do cantor Francisco Alves, o Rei da Voz, quando foi incentivada por ele a se arriscar no ofício. Em uma festa com a presença de Carmen Miranda, entoou o samba-choro “Camisa Listrada”, de Assis Valente, e foi aplaudida por todos. Logo, ela se acostumaria com a aclamação do público. Em 1943, a primeira diva negra da música brasileira apresentou ao país o então iniciante compositor Luiz Gonzaga, que participou da gravação de “Xamêgo”, parceria com Miguel Lima: “Todo mundo quer saber/ O que é o xamêgo/ Ninguém sabe se ele é branco/ Se é mulato ou negro”, avisava o irresistível refrão deste xote.

“Asa Branca” (toada, 1947) – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

“Asa Branca” é considerada a música brasileira mais conhecida do país, um clássico absoluto. Originária de um tema folclórico, que versa sobre uma pomba brava que foge do sertão ao pressentir os sinais da seca, essa toada foi desenvolvida por Luiz Gonzaga, que a conhecia desde a infância através da sanfona do pai.

O “Rei do Baião” pediu ao parceiro Humberto Teixeira para criar uma letra, e incluiu melhoras na melodia, para satisfazer uma comadre que gostaria muito de vê-la gravada. O primeiro registro data de 1947. Depois, ela recebeu inúmeras regravações, sendo reconhecida no Brasil e no exterior. Nos anos 1960, o polêmico produtor Carlos Imperial até espalhou um boato de que ela teria sido gravada pelos Beatles. Mas quem a regravou foi Zé Ramalho.

“Dezessete e Setecentos” (calango, 1947) – Luiz Gonzaga e Miguel Lima

Se Manezinho Araújo espalhou os versos de Miguel Lima sobre a música de Luiz Gonzaga com “Dezessete e Setecentos”, a gravação de Jackson do Pandeiro para “Como Tem Zé Na Paraíba” (“Vixe como tem Zé/ Zé de baixo, Zé de riba/ Desconjuro com tanto Zé/ Como tem Zé lá na Paraíba”), tornou-se tão emblemática que poucos associam o rojão a seus verdadeiros autores (no caso uma parceria de Araújo com Catulo de Paula).

“Desde sempre é assim, a maioria das pessoas não presta atenção no compositor, mas sim em quem canta, o próprio rádio tem por hábito dizer o nome do intérprete”, lamenta o cantor e compositor Geraldo Maia, que homenageou o seu conterrâneo no álbum “Ladrão de Purezas”, lançado no ano de 2011, e pelo selo Biscoito Fino.

“Qui Nem Jiló” (baião, 1949) – Luiz Gonzaga e Humberto Texeira

O jiló sempre foi um alimento marginalizado na cultura brasileira, por conta do seu gosto amargo, como já cantava Luiz Gonzaga em seu baião em parceria com Humberto Teixeira, de 1949. Na música, Gonzagão utilizava o jiló para falar do tamanho da saudade que sentia de sua amada. Já na Comida di Buteco do ano de 2012, o jiló acabou sendo utilizado para preparar diversos e saborosos pratos e acabar com sua má fama, imortalizada por ditados como “sobrar que nem jiló na janta”. Ao som de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, lembramos o tema da já célebre Comida di Buteco, com o baião “Qui Nem Jiló”.

“Paraíba” (baião, 1950) – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

Embora seja o Nordeste brasileiro identificado, com frequência, junto a um universo machista e preconceituoso, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira quebraram esse paradigma de maneira enviesada, em 1950. Outro forte costume da região é também o das mulheres fortes, que, não por acaso, tornam-se as lideranças das famílias e dos lares, capazes de enfrentar os maiores desafios e as violências dos próprios maridos e da moral do ambiente. No baião “Paraíba”, os compositores provavelmente prestam homenagem a essa figura, bem atribuída à mãe, e reiteram: “Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor!”. A música foi regravada pela leoa do norte, Elba Ramalho.

“Respeita Januário” (forró, 1950) – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

Coroado “Rei do Baião”, Luiz Gonzaga compôs, ao lado de Humberto Teixeira, uma das mais representativas canções sobre o relacionamento entre pai e filho, especialmente na região Nordeste, levando em conta, como de costume, uma experiência pessoal. Expulso de casa pelo pai quando era mais novo, Gonzagão atesta a reverência adquirida através dos anos à figura paterna, o respeito transformado em afeto, sublinhado em versos de advertência de um compadre da terra ao pretensioso garoto: “Respeita Januário”, baião de 1950...

“Olha pro Céu” (marcha junina, 1951) – Luiz Gonzaga e José Fernandes

Conhecido como o Rei do Baião, Luiz Gonzaga lançou dois discos inteiramente dedicados a músicas juninas, tamanha sua identificação com a causa, ambos intitulados “Quadrilhas e Marchinhas Juninas”, o primeiro de 1965, e o volume II de 1979, que trazia ainda o epíteto “Vire Que Tem Forró”. Mas nenhuma música de sua autoria produziu tanto impacto quanto “Olha pro Céu”, parceria com José Fernandes, lançada em 1951 e regravada por Elba Ramalho e Gilberto Gil, entre outros astros da nossa MPB. “Olha pro céu, meu amor/ Vê como ele está lindo/ Olha praquele balão multicor/ Como no céu vai sumindo”.

“O Xote das Meninas” (xote, 1953) – Luiz Gonzaga e Zé Dantas

“O mandacaru é um tipo de cacto que não precisa de chuva para florescer. No sertão, quando o mandacaru floresce no período da seca, o caboclo fica crente que a trovoada se aproxima”. Essas são palavras de Zé Dantas que, ao lado de Luiz Gonzaga, compôs “O Xote das Meninas”, um dos principais clássicos da música brasileira. Foi fazendo uma relação entre o mandacaru em período de fertilidade e a menina que enjoa da boneca e começa a virar mulher, que Zé Dantas escreveu a letra da música, lançada por Luiz Gonzaga em 1953 e regravada por Ivon Curi no ano seguinte. Elba Ramalhou a regravou em 2002.

“A Vida do Viajante” (baião, 1953) – Hervé Cordovil e Luiz Gonzaga

O mineiro Hervé Cordovil transitou pelos mais variados gêneros com a mesma eficácia, para dizer pouco. Isso porque o pianista, regente e compositor desencorajado por Eduardo Souto, diretor da Casa Edison, no início de carreira, escreveu parcerias com Noel Rosa, Lamartine Babo e Luiz Gonzaga, para citar alguns. E foi ele o compositor sozinho de sucesso de Dick Farney, “Uma Loura”, e da Jovem Guarda, “Rua Augusta”.

Nascido em Viçosa, Hervé conquistou quietinho o reconhecimento, e sem fazer barulho, apenas som de primeira. Um dos prefixos adotados pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga, foi cunhado por seu parceiro Hervé Cordovil, que compôs com ele “A Vida do Viajante”. Luiz Gonzaga levou na bagagem versos de afinada sintonia e inspiração com sua pessoa de artista: “minha vida é andar por esse país”, diz...

“Cartão de Natal” (marcha, 1954) – Luiz Gonzaga

Luiz Gonzaga já era chamado em todo o Brasil de “Rei do Baião”, graças a sucessos como “Asa Branca”, “Juazeiro”, “Paraíba” e “Baião de Dois”, quando, em 1954, resolveu dar a sua contribuição para as comemorações natalinas, com a delicada marcha “Cartão de Natal”. A música trata da celebração a partir das origens nordestinas e pernambucanas de Luiz Gonzaga, natural de Exu, no interior do Estado. O arranjo leva o ouvinte para esses interiores do Brasil, aonde é possível ouvir coros de anjos e sinos repicando. A música ganhou uma bonita regravação de Elba Ramalho, no disco “Natal Bem Brasileiro”, lançado em 2008, com um time de intérpretes que reuniu Maria Bethânia e Zezé Motta.

“Riacho do Navio” (xote, 1955) – Luiz Gonzaga e Zé Dantas

Já na década de 1950, Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, e Zé Dantas, seu parceiro de tantas andanças musicais, compuseram o xote “Riacho do Navio” que celebrizou o curso fluvial nordestino e o rio Pajeú, do sertão pernambucano, Estado natal dos compositores. Além da sonoridade típica do sanfoneiro, que lembra, sem dúvida, o movimento de águas, a letra versa sobre a necessidade de o homem voltar às raízes e à vida simples, de ser novamente peixe e se integrar à natureza. A música foi lançada no ano de 1955 e regravada por Fagner, Dominguinhos, Geraldo Azevedo, Nazaré Pereira, e etc.

“Xote Ecológico” (xote, 1989) – Luiz Gonzaga e Aguinaldo

No último ano de sua carreira e também de vida, Luiz Gonzaga ainda teve tempo de mandar, junto com o parceiro Aguinaldo, um importante recado para o mundo. Trata-se da música “Xote Ecológico”, lançada em 1989, em que os compositores queixam-se da qualidade de vida que resultou da destruição que o homem impôs à natureza. “Não posso respirar/Não posso mais nadar/A terra está morrendo…”. E completam na estrofe seguinte: “Cadê a flor que estava aqui?/Poluição comeu/E o peixe que é do mar?/Poluição comeu”. Por fim, homenageiam o combatente e corajoso ativista Chico Mendes, brutalmente assassinado pelos que defendiam interesses escusos. E a música é um alerta!