Ouvindo...

Desamparo

É no aparente abandono que Deus se revela e nos fala

A coluna do padre Samuel é publicada às quintas-feiras

A gente nasce na condição de desamparo. Um bebê é um mar de possibilidades emocionais, psíquicas, na exata proporção em que é todo demanda de leite, calor, afeto, amparo. A magia e o drama de ser humano é que, diferente dos bichos, que já nascem praticamente prontos, nós nascemos “na condição de possibilidade”, de “ser-aí” (como lembrava Heidegger). Estamos lançados no mundo, à deriva, desamparados, despatriados do útero, que acolhe por nove meses, mas, para fazer nascer, expulsa...

Há possibilidades para amparar-se: os pais, os primeiros romances, uma profissão, o casamento, a religião, os filhos... Todas essas coisas são muito boas, inclusive, mas não podem ser escoras. Há sempre um espaço pessoal, intransferível, por detrás da rotina e das cortinas; da paixão e do rito que precisa ser encontrado! Uma espécie de Jardim Secreto, entende? Lá onde a aceitação de si é a cláusula fundamental. Lá onde nascem “os atos sem testemunha”. Lá onde reside o sentido de vida, que é silencioso, realizador e heroico. Lá onde é tudo, ao fim, só sobre a alma e o amor de Deus, que explica tudo.

Eu e você somos pó (Gn 3,19), seres de procura, de ansiedade, de falta. Viver não é outra coisa que, por um instante nos alcançarmos - ah, eu vou caber nesse relacionamento, nessa casa, neste emprego, agora sim! -, e, no outro, nos perdermos, em meio a um sequestro de nós – Mas, meu Deus, é só isso? Que rotina insana...como vou dar conta? Qual é o meu lugar? Não se assuste, é, no meio desse desemparo e aparente abandono, que Deus se revela e nos fala. Lembre-se de que Abraão se tornou justo a partir da “falta”. Na dor de Sara, cujo útero estava seco e incapaz de parir, o Senhor Deus faz surgir a Salvação que alcança as angústias do mundo inteiro. Lembre-se da promessa que Deus faz no livro do Êxodo (3,14) “ehyeh asher ehyeh”, “eu sou aquele que serei”, isto é, lá onde você sentir que não é capaz, que lhe faltam forças, eu poderei ser. Podemos dizer que duas sãos as certezas mais importantes acerca de nós: primeiro, não damos conta de tudo, e, segundo, o que não pudermos fazer, Deus providenciará.

Se convença: quem nos sustenta é a Graça! Essa é a consciência do Apóstolo, na carta das lágrimas (2 Cor 2,4). Diante do seu desamparo, de sua atroz fraqueza, de uma situação limite – como aquelas em que nós as vezes nos encontramos – o Cristo lhe diz: “Paulo, basta-te a minha graça; pois é na fraqueza que a força se realiza plenamente” (2 Cor 12,9).

Supliquemos do Espírito – estamos às Vésperas de Pentecostes – que venha em auxílio de nossa fraqueza (Rm 8, 26). Qualquer um que se conhece bem, não se leva tanto a sério, ao ponto de ser devorado por ansiedades sobre o fazer, o poder, o dever...Tomemos por empréstimo as palavras de Paulo, a força não virá de outro lugar do que de dentro de nós, onde o Espírito habita (Jo 14, 18): é pela Graça de Deus que sou o que sou. E sua graça em mim não foi em vão. A prova é que tenho trabalhado mais do que todos, não propriamente eu, mas a Graça de Deus comigo. Portanto é isso que tenho anunciado, e é essa a fé que abraçastes! (1 Cor 15, 10-11).

Assista à reflexão:

Pró-reitor de comunicação do Santuário Basílica Nossa Senhora da Piedade. Ordenado sacerdote em 14 de agosto de 2021, exerceu ministério no Santuário Arquidiocesano São Judas Tadeu, em Belo Horizonte.