Meu avô sempre diz que o problema do Brasil não é a política. É a politicagem. Política, no sentido nobre, é o debate de ideias, a busca de soluções, a construção coletiva de um projeto de país. É compromisso ético, responsabilidade pública, respeito às diferenças. Politicagem, por outro lado, é o uso da máquina pública para fins privados. Não é debate, não é pluralidade, não é divergência legítima. É o orçamento tratado como moeda de troca. É o privilégio disfarçado de lei. Infelizmente, é isso o que temos visto no Congresso Nacional.
Na mesma semana em que o parlamento derrubou o aumento do IOF, abrindo mão de arrecadar cerca de R$ 10 bilhões só em 2025, os mesmos parlamentares aumentaram o número de deputados federais. Cortaram receita e aumentaram despesas ao mesmo tempo. Serão 18 novas cadeiras na Câmara, com um custo anual estimado em R$ 750 milhões. Tudo decidido sem debate técnico e sem compromisso com o equilíbrio fiscal.
Esse episódio é um reflexo de como a politicagem tem contaminado o Congresso brasileiro ultimamente. O país convive, quase sem maiores constrangimentos, com um dos parlamentos mais caros do mundo. Para além dos salários de deputados e senadores, há uma estrutura paralela de privilégios: moradia, contas de celular, combustível, passagens e alimentação pagos pelo erário. Em 2025, o orçamento para sustentar essa engrenagem ultrapassa R$ 15 bilhões. Em termos proporcionais, o Brasil gasta 0,12% do seu PIB com o Legislativo federal, três vezes mais que os Estados Unidos e seis vezes mais que o Reino Unido.
Muitos senadores e deputados discursam em nome do equilíbrio fiscal, mas, na primeira oportunidade de ampliar espaços, manter privilégios ou mandar recado ao governo, fazem isso sem pudor e com prioridade absoluta. Quando o Executivo, seja qual for o governo, não atende aos interesses do Parlamento (interesses que raramente se confundem com o interesse público) a reação vem do jeito conhecido: aumentam as despesas, fragiliza-se o orçamento e o equilíbrio entre os poderes vai sendo corroído. Tudo isso com total desprezo pela opinião pública e pelas finanças do país. A retórica da responsabilidade fiscal virou, na prática, um instrumento de conveniência. Enquanto se multiplicam discursos sobre contenção de gastos e austeridade, os privilégios, os cargos e as emendas continuam crescendo.
Nos últimos anos, o Congresso brasileiro ampliou deliberadamente seu poder sobre o orçamento da União. Deputados e senadores hoje controlam mais de R$ 50 bilhões em emendas, o que representa cerca de um quarto do gasto discricionário federal. Não há precedentes no mundo de um Legislativo com tanto poder direto sobre a execução orçamentária. Em nenhum país democrático o parlamento dispõe de tamanha influência sobre o destino dos recursos públicos. O equilíbrio entre os Poderes foi rompido, e as consequências disso são graves para as políticas públicas e para o planejamento do país.
Enquanto vários setores do serviço público se sacrificam para que o governo cumpra o arcabouço fiscal, os mecanismos de destinação de recursos por interesse político se multiplicam. As chamadas “emendas Pix”, criadas após o desgaste do orçamento secreto, aprofundaram a opacidade na gestão do orçamento público. Mudou o nome, mas a lógica do uso privado dos recursos permanece intacta. Como não era difícil de se supor, não demoraram a aparecer os casos de corrupção.
Nos últimos dias, a Polícia Federal deflagrou uma operação na Bahia contra um esquema milionário de desvio de emendas parlamentares. Prefeitos, ex-prefeitos e parlamentares são investigados por suposto esquema de liberação de recursos em troca de propina e fraudar licitações.
O que está em jogo não é apenas o controle do orçamento, mas o próprio equilíbrio entre os Poderes da república e o combate à corrupção. Num ambiente em que emendas bilionárias se tornaram moeda de poder e, em muitos casos, de corrupção, o planejamento público e o interesse coletivo ficam, mais uma vez, em segundo plano.
O episódio da terça-feira, 25 de junho, quando o Congresso derrubou o decreto do governo que elevava o IOF sobre operações de câmbio, é apenas mais uma expressão desse padrão. Não houve debate qualificado. Não houve proposta alternativa. Não houve compromisso com a estabilidade fiscal. Apenas uma votação-relâmpago, voltada mais a constranger o Executivo do que a corrigir distorções.
O roteiro se repete. A cada emenda obscura aprovada, a cada privilégio preservado, a cada espaço de opacidade mantido, o país avança no processo de banalização dos abusos. Não são rupturas abruptas, mas distorções silenciosas que, acumuladas ao longo do tempo, enfraquecem as instituições e corroem as bases da democracia.
O sistema atual normalizou o uso do orçamento público como instrumento privado e converteu o orçamento da União em moeda eleitoreira, distorcendo sua função pública. Essa velha lógica do curral eleitoral, vício centenário da política brasileira, não apenas sobreviveu, mas sofisticou-se. Hoje, opera com o auxílio de estruturas digitais, marketing de precisão e bilhões de reais em emendas parlamentares. As ferramentas mudaram, mas o método é o mesmo: criar dependência, consolidar poder e encabrestar o voto.
Há medidas que poderiam conter o avanço da politicagem sobre as instituições. Não se trata de enfraquecer o Legislativo, que deve ser forte, autônomo e respeitado, mas de assegurar o equilíbrio necessário entre os Poderes e a boa gestão dos recursos públicos. É preciso estabelecer critérios técnicos para as emendas parlamentares, garantir o rastreamento transparente dos recursos, superar mecanismos opacos como as chamadas emendas Pix e, acima de tudo, evitar distorções que concentram, nas emendas, parcela desproporcional do orçamento federal. Isso não resolve tudo, mas seria um começo.
O Brasil precisa de estabilidade política, segurança jurídica e compromisso com o interesse público. Cabe ao próprio Congresso, como pilar da democracia, conduzir esse processo de aprimoramento, o que passa, também, por um gesto de autocrítica. Pesquisa recente mostra que 47% dos brasileiros avaliam negativamente o trabalho do Senado e 44% têm percepção negativa sobre a Câmara dos Deputados. Apenas 17% e 12%, respectivamente, enxergam o desempenho dessas instituições de forma positiva. Esses números são um sinal de alerta e revelam distanciamento entre parte significativa da sociedade e o Parlamento. Superar esse cenário não depende de discursos, mas de ações que fortaleçam o orçamento público como instrumento democrático de planejamento e emancipação. Só assim será possível, gradualmente, construir a confiança da sociedade na política e nas instituições.
Enquanto isso não acontece, o país segue no compasso da politicagem, para tristeza do meu avô, que ainda insiste em acreditar na nobreza da boa política, aquela que, entre sonhos e contradições, Juscelino tentou concretizar.