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As terras raras de Minas, a advertência de Arthur Bernardes e a nova fronteira da soberania nacional

Com perfil austero, civilista convicto e avesso à retórica ornamental, ele se notabilizou pelo estilo objetivo: ‘Minério não dá duas safras’, disse Bernardes

Viçosa, cidade natal de Arthur Bernardes

Minas Gerais carrega em seu nome a vocação e o destino: é solo de riquezas minerais e berço de uma das mais refinadas tradições políticas do país. Desde os tempos do Império, a terra das alterosas moldou figuras centrais da história nacional. A política mineira se notabilizou tanto pela arte de compor alianças, quanto pela assertividade do discurso. Em Minas, o poder historicamente se exerce pela palavra (e pelo silêncio), pelo gesto contido e pela capacidade de dizer, sem excessos. Daí nasceram frases lapidares, silêncios eloquentes e uma diplomacia característica que ajudaram a esculpir a memória política brasileira.

Entre esses homens de Estado forjados pela mineiridade, merece destaque Arthur da Silva Bernardes, mineiro de Viçosa, nascido em 1875 e falecido em 1955. Advogado, foi deputado, senador, governador de Minas Gerais e, por fim, presidente da República entre 1922 e 1926, em um período marcado por revoltas militares e embates entre forças civis e armadas. Por décadas, Bernardes foi a principal liderança do Partido Republicano Mineiro (PRM), expressão maior do poder político de Minas no pacto oligárquico da Primeira República. Seus adeptos, os chamados “bernardistas”, eram conhecidos pelo uso simbólico do cravo vermelho na lapela. Com perfil austero, civilista convicto e avesso à retórica ornamental, ele se notabilizou pelo estilo objetivo. De sua lavra, uma frase atravessou o tempo como sentença e advertência: “Minério não dá duas safras”.

Que frase poderosa! Cinco palavras que traduzem, com crueza, uma obviedade que muitos ignoram até hoje: a riqueza mineral, uma vez extraída, não volta. Não se renova. Não reaparece. Diferente da agricultura ou da pecuária, o minério não permite ciclos. É uma oportunidade única, que exige planejamento, soberania e visão de futuro.

Bernardes sabia do que dizia. Nascido no coração de um estado moldado pelo ouro, pelo ferro e por uma longa tradição extrativista, compreendia como poucos a natureza efêmera da riqueza mineral e os riscos de uma economia submissa ao capital externo. No início do século XX, as jazidas ferríferas de Itabira haviam sido entregues a Itabira Iron Ore Company, criada por ingleses em 1911 com o nome de Brazilian Hematite Syndicate e, posteriormente, controlada pelo empresário norte-americano Percival Farquhar. Foi o próprio Bernardes (com o apoio decisivo de seu brilhante secretário e futuro ministro, Clodomiro de Oliveira) quem liderou a resistência à execução do contrato, impedindo a implementação das cláusulas de exploração. A disputa atravessou décadas, até que, em plena Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas firmou os Acordos de Washington, em 1942, que viabilizaram a criação da Companhia Vale do Rio Doce. A Vale nasceu da tensão entre o apetite geopolítico das potências aliadas e a luta brasileira por soberania sobre suas riquezas minerais.

A advertência do ex-presidente mineiro, forjada em meio às disputas do início do século passado, ressurge agora com um vigor ultra-renovado. O mundo voltou seus olhos para o subsolo. A transição energética global, impulsionada pelas mudanças climáticas e pela necessidade urgente de substituir os combustíveis fósseis, desencadeou uma nova corrida por minerais estratégicos. É o caso do lítio, indispensável para baterias de longa duração; do nióbio, essencial na produção de ligas metálicas de alta resistência; do grafite, fundamental na fabricação de componentes eletrônicos; e das chamadas terras raras, um grupo de 17 elementos químicos vitais para motores elétricos, turbinas, equipamentos médicos e tecnologias de ponta. Esses minerais tornaram-se peças centrais na engrenagem industrial contemporânea. Onipresentes nos dispositivos digitais do século XXI, são a base dos carros elétricos, dos painéis solares, das turbinas eólicas, dos satélites e dos sistemas globais de telecomunicação. Segundo a Agência Internacional de Energia, a demanda global por terras raras pode triplicar até 2040, impulsionada pela transição energética e pelo avanço das tecnologias limpas.

Neste novo cenário global, o Brasil ocupa uma posição interessante no tabuleiro mineral. Detentor da sétima maior reserva de lítio do mundo e de mais de 90% das reservas conhecidas de nióbio, o país concentra, em seu território, insumos cruciais para a indústria de alta tecnologia e para a transição energética. Minas Gerais é o coração desse potencial: abriga a maior província de lítio do país no Vale do Jequitinhonha e concentra jazidas significativas de terras raras em Araxá, Poços de Caldas e outras regiões. Mas a abundância, por si só, não garante prosperidade. Sem estratégia, corremos o risco de repetir o velho roteiro: exportar matéria-prima e importar tecnologia, ou seja, renunciar ao nosso potencial de gerar conhecimento, empregos qualificados, inovação e justiça distributiva. Trata-se, em última instância, de um dilema civilizatório: transformar a dádiva geológica em desenvolvimento compartilhado, moldando nosso lugar no mundo não pelo que extraímos do subsolo, mas pelo que conseguimos criar, sustentar e legar a partir dele.

A pergunta que se impõe é inadiável: seguiremos sendo meros fornecedores da prosperidade alheia ou teremos a coragem histórica de erguer um projeto nacional que transforme nossa base mineral em soberania e futuro? O poder de um país não está na posse inerte de seus recursos, mas na inteligência de convertê-los em valor agregado, ciência aplicada e autonomia produtiva. A China é o exemplo mais eloquente dessa equação: concentra 70% da produção mundial de terras raras e domina os elos mais rentáveis da cadeia, do refino à fabricação dos ímãs permanentes que impulsionam motores e turbinas. O Brasil, ao contrário, permanece cativo do elo mais frágil, exportando riqueza em estado bruto e importando tecnologia com valor multiplicado.

Nesse contexto, o desafio de Minas Gerais se revela em toda a sua complexidade. Trata-se, acima de tudo, de uma questão política. Exige a formulação de uma estratégia clara, duradoura e articulada, sustentada pelo diálogo entre os entes federativos, por compromissos que transcendam as disputas partidárias e por uma governança capaz de resistir ao imediatismo do calendário eleitoral. O que está em jogo não é a eliminação das divergências políticas (salutares em uma democracia), mas a capacidade de integrá-las a um horizonte coletivo, que ponha a inteligência mineral a serviço da ciência, da soberania e da justiça social. O que se observa, no entanto, é a persistência de iniciativas isoladas, agendas sobrepostas e disputas por protagonismo que sabotam o potencial compartilhado do país.

Enquanto algumas nações avançam na consolidação de cadeias produtivas completas, que vão da extração ao refino e deste à manufatura de componentes de alta complexidade, o Brasil e Minas Gerais, em particular, reúnem as condições geológicas, técnicas e institucionais para seguir o mesmo caminho. Um exemplo vem de Lagoa Santa, onde foi implantado o primeiro laboratório-fábrica de ímãs de terras raras do hemisfério sul. Idealizado originalmente pela Codemge e hoje sob a gestão da Fiemg e do Senai, o empreendimento combina capacidade produtiva, articulação com universidades e indústrias e vocação para a inovação. Isso representa uma possibilidade real de reposicionar o país no tabuleiro tecnológico global, desde que amparada por uma estratégia nacional consistente e de longo prazo. Sem articulação política consistente e planejamento estruturado, tecnicamente competente e guiado por diretrizes sustentáveis de longo prazo, até mesmo as iniciativas mais promissoras tendem a definhar, soterradas por um deserto de improvisações.

Minas Gerais, que já foi berço de ciclos econômicos decisivos e epicentro de transformações políticas e culturais no Brasil, pode e deve, mais uma vez, assumir a dianteira. Mas o desafio, agora, é outro. Não basta extrair, é preciso transformar. O desafio está posto: deixar de ser mero provedor bruto e assumir o papel de protagonista tecnológico, implementando um modelo de desenvolvimento que converta a riqueza mineral em prosperidade para toda a nação. A oportunidade é rara, assim como os elementos que hoje despertam a cobiça do mundo. Como advertiu, com precisão e sobriedade, o velho viçosense de cravo vermelho: minério só tem uma safra. Façamos o certo agora ou o futuro nos julgará implacavelmente.

Alisson Diego Batista Moraes é advogado, professor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais, com especializações em Gestão Empresarial e Direito Constitucional, possui 20 anos de experiência em gestão pública. Foi prefeito e secretário municipal. É escritor, consultor em planejamento e políticas públicas. Site: www.alissondiego.com.br

A opinião deste artigo é do articulista e não reflete, necessariamente, a posição da Itatiaia.