Ouvindo...

Quando fracassamos no triunfo

Sobre as dificuldades do ser humano de conviver com suas culpas e as consequências dos malfeitos

“Tudo perdemos quando o que queríamos,/ Obtemos sem nenhum contentamento:/ Mais vale ser a vítima destruída/ Do que, por a destruir, destruir com ela/ O gosto de viver”.
Macbeth; William Shakespeare

A frase é de Lady Macbeth, no Ato III, cena 2, da tragédia mais curta de Shakespeare (1606). A obra trata da dificuldade do ser humano de conviver com suas culpas e as consequências dos malfeitos. Nela, Macbeth, general escocês, é tomado pela ambição do poder e deseja tornar-se rei. Quando o monarca hospeda-se no castelo do general, a esposa deste, Lady Macbeth, recebe o soberano com toda honraria, mas secretamente estimula o marido a matá-lo. Ele, Macbeth, que havia protegido o rei com honra e lealdade por muitos anos, decide executá-lo enquanto o governante dormia. Lady Macbeth não só incentiva o marido a cometer o assassinato, mas diante da hesitação do companheiro, também participa da empreitada criminosa, tomando-lhe o punhal:

“- Oh! Que vontade fraca! Dai-me as armas. Os mortos e os que dormem são pinturas, nada mais. É somente o olho da criança que tem medo do diabo desenhado.”

Consumado o crime, os filhos do rei fogem com medo de terem o mesmo destino do pai, deixando o caminho livre para Macbeth que, de fato, assume o reinado. Entretanto, a consciência e o sentimento de culpa, não o abandonam. Sua esposa, Lady Macbeth, ao assumir o trono como rainha, também sofre de enorme desapontamento, quando então profere a frase que abre esta coluna. Em seguida ela enlouquece e morre, aparentemente por suicídio.

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A peça é riquíssima e nos permite diversas interpretações, mas o que este aprendiz chama a atenção do leitor é para o fato de Lady Macbeth desejar algo, no caso o poder, com intensidade e, após conquistá-lo, acabar por não usufruir dele. E aí vem a indagação: Por que muitas vezes trabalhamos, nos esforçamos e conseguimos algo que muito desejamos e, de repente, no momento da consagração, não usufruímos da conquista? Por que buscamos momentos de lazer e, quando o conseguimos, privamo-nos de desfrutá-lo?

Lutamos para ingressar na faculdade, formarmo-nos, conseguir o primeiro emprego, ter um trabalho digno e, muitas vezes, diante das conquistas, somos tomados por um sentimento de inércia que nos impede de gozar das vitórias. Ao fim e ao cabo, renunciamos ao prazer, não obstante o êxito após tanto sacrifício. É como se não aguentássemos a nossa felicidade. Assim como em outras profissões, no Direito também é assim. Muitos sequer comemoram o ingresso na carreira dos sonhos. Quando ingressei no Ministério Público do Estado da Bahia, em 2004, comemorei, mas logo já me vi preocupado com a mudança de cidade, com a ida para um lugar completamente desconhecido, com o “novo”, com a carreira, etc. A comemoração não foi à altura do sacrifício e das agruras até lograr a aprovação no difícil concurso. Depois, decidi retornar às minhas origens. Em meio ao trabalho, estudava nas madrugadas, finais de semana e feriados. Lograda a aprovação em 2006, para o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, sonho antigo e permanente, praticamente não comemorei. E, provavelmente, o mesmo ocorreu com boa parte dos escassos leitores deste espaço, independente da área de atuação. Nada mais estranho, não?

Pois não é que, em 1916, Sigmund Freud, tratou desse curioso tema ao publicar um trabalho chamado “A transitoriedade”, com base em alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica? Ele relata um passeio, em meio uma bela paisagem, num dia de verão, na companhia de um amigo, jovem e famoso. O amigo, apesar do belo cenário que os rodeava, não se alegrava, não conseguia curtir e aproveitar o momento. Ao contrário, “era incomodado pelo pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desapareceria no inverno, e assim também toda a beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar”. Freud então indagava do porquê de não valorizar os momentos, ainda que passageiros, o que naturalmente abrangia as conquistas. Ele questionava nossa letargia, em especial diante dos momentos de fruição limitada, como aquela paisagem de verão e a brevidade da vida, que deveriam aumentar a sua preciosidade. A partir dessas reflexões, Freud desenvolveu três ensaios, sendo um deles “Os que fracassam no triunfo”, inspirado justamente na peça Macbeth de Shakespeare.

No ensaio, ele traz o caso de um “homem bastante respeitável” que muito tinha lutado para ingressar na academia, depois para se tornar professor e, finalmente tinha alcançado seu “desejo de suceder na cátedra o seu mestre”. Quando finalmente conseguiu o grande êxito de sua vida, hesitou, diminuindo seus méritos, declarando-se indigno para a função e acabou se afastando de qualquer atividade. O caso relatado por Freud provavelmente permeia o quotidiano de muitos de nós, inclusive nas pequenas coisas, quando nos privamos - sem nenhuma necessidade - de uma real satisfação, de um “proveito longamente ansiado” ou da simplicidade do essencial, como na convivência com os que amamos.

É aí que se costura o raciocínio de Freud e de Shakespeare, reproduzido a seguir, na voz de Lady Macbeth:

“- É justamente isso o mais terrível, que agora – quando toda a felicidade do mundo me é entregue nas mãos -, eu me tenha tornado uma pessoa cujo caminho para a felicidade é obstruído pelo próprio passado”

O leitor pode até fazer uma distinção justa, já que Lady Macbeth cometeu um ato horroroso – o homicídio – o que talvez justificasse o sentimento de culpa. Porém, por vezes, renunciamos ao ganho proveniente de nossos atos, ainda que nobres ou desprovidos de qualquer maldade.

Pós-Carnaval

Bom, caro leitor, são estas as minhas reflexões pós-carnavalescas para que possamos aproveitar mais os dividendos dos sacrifícios com muita alegria e comemoração. Imagino que o leitor esteja a indagar sobre o que levou este aprendiz a escrever estas breves linhas, ainda mais em campo alheio às minhas funções ordinárias. Bom, não sei exatamente a resposta, talvez apenas um desejo de partilhar de uma reflexão que há tempos me inquieta. Ou talvez, como amante do Carnaval, seja o desejo de muitas festas e alegrias como as que se espalharam pelo Brasil afora esta semana e das quais também pude aproveitar. Ou talvez por acreditar que a grande conquista de “Ainda Estou Aqui” não foi devidamente comemorada por todos nós. Ou talvez seja uma desculpa pela falta de assunto. Ou tudo isso junto e misturado. A conclusão, deixo-a com você que me aturou até aqui.

Ops. Em meio à alegria do Carnaval, fomos surpreendidos com o falecimento do grande mineiro Affonso Romano de Sant’Anna. Seus textos, além de poéticos, são muito reflexivos e nos fazem pensar na importância do viver (e comemorar). Partilho um de muitos:

Reflexivo
O que não escrevi, calou-me./ O que não fiz, partiu-me./ O que não senti, doeu-se./ O que não vivi, morreu-se./ O que adiei, adeus-se.
Affonso Romano de Sant’Anna

Doutor e Mestre em Direito Penal pela UFMG e Desembargador no TJMG. Escreve aqui sobre Literatura, Arte e Direito.
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