A situação é conhecida: a vida está um caos, mas afirma-se que tudo corre perfeitamente bem. Há dez anos, KC Green transformou este fato em uma tirinha e, algum tempo depois, a arte se tornou um dos
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Na arte criada por Green, o cachorro Question Hound aparece sentado com uma xícara sobre a mesa à sua frente. Seu entorno está em chamas, mas o cão afirma: “Está tudo bem” (“This is fine”). Ao longo da tirinha, o personagem tenta se manter impassível em meio ao incêndio - até que termina derretido. A frase com sentido irônico passou a representar que nada está bem.
Quando a criou, Green buscava expressar seus pensamentos e sentimentos: ele tinha 25 anos e se concentrava em sua própria saúde mental. “Eu estava tentando acertar meus antidepressivos e tomando os remédios. Esse foi meu sentimento na época — de me preocupar se essa era a escolha certa”, conta em entrevista à Rádio Pública Nacional (National Public Radio – NPR).
Kleyson Barbosa, autor de “Os 198 Maiores Memes Brasileiros Que Você Respeita”, de 2017, avalia que é justamente a identificação com a
O reconhecimento à arte de Green e sua transformação em meme vieram quando os dois primeiros quadros foram publicados em um fórum do Reddit. “Eu meu lembro de eles serem usados em contas de memes no Instagram com frases como ‘Quando a semana de provas começa’, está tudo bem, ‘Quando todos gritam com você e você deve manter o sorriso no trabalho’, está tudo bem,” lembra Green. “Foi uma bola de neve a partir daí.”
Não demorou muito para Question Hound se tornar ilustre. Em 2016, a Convenção Nacional do Partido Republicano dos EUA publicou o meme na conta do
Green aceita que ‘This Is Fine’ tenha ganhado vida própria como consequência natural do significado de criar conteúdo online. Para ele, muitos se identificaram com a arte por tantos anos em razão de sua simplicidade. “Eu a fiz vaga propositalmente”, conta. “Como qualquer boa obra de arte, as pessoas interpretam como querem.”
Para Barbosa, os aspectos artístico e cultural desse meme o destacam. Um fã da imagem a transformou em um vídeo contínuo e depois o projetou na janela da própria casa durante a semana de Halloween em 2020.
Polyana Inácio, doutora e pesquisadora em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aponta que os memes têm o apelo forte do humor e da ironia. “Além disso, eles têm o potencial de se espalhar e de noticiar”, aponta. “Nas redes sociais, eles ganharam notoriedade por proporcionar engajamento.”
Ela compara o
Quase meio século
Embora a internet tenha dado popularidade e amplificado o uso de memes, seu conceito já tem quase 50 anos — o primeiro a estudá-los foi o etólogo Richard Dawkins, em 1976. Ele identificou que os memes são a unidade de replicação responsável pelo evolucionismo cultural. “Tudo o que se assimila de geração para geração na cultura é meme. O que faz da gente humano é justamente conseguir transmitir o lúdico”, aponta Barbosa. “Desde a infância, aprendemos por imitação”, completa Polyana.
O uso do termo com o sentido atual ocorreu pela primeira vez em 1998, quando Joshua Schachter criou o site Memepool. Durante os anos 2000, o conceito passou a ser aplicado amplamente online. “Um meme é algo assimilado, retrabalhado, personalizado por outros internautas. O ‘This is Fine’, por exemplo, passou a ser usado em situações alheias à que levou a sua criação por Green”, reforça Barbosa.
Para ele, o meme é um novo padrão de
Barbosa destaca que, atualmente, as pessoas se comunicam em forma de meme. “Uma imagem simples pode trazer muita profundidade. Quem se comunica com meme demonstra um grau elevado de conhecimento cultural a ponto de ser crítico ou elogioso, o que demanda profundidade sobre o tema.”
Sentimento da coletividade
Polyana lembra que os memes ajudam a entender qual é a impressão e o sentimento da coletividade em relação a um acontecimento. “Ele revela um sentimento coletivo de identificação. Muitas vezes, é algo que a gente pensou, mas não encontrou palavras para verbalizar.”
Essa forma de comunicação não tem fronteira de tempo nem de espaço: a
E os memes devem continuar entre nós: na opinião de Polyana, eles dialogam com novas formas de expressão. “Já existiam antes da internet e têm se adaptado a diferentes suportes midiáticos. Um exemplo são os bento cakes, que usam bolos como forma de expressão. Esse modelo se expande em diferentes suportes de comunicação: figurinhas de plataformas de mídias sociais, dancinhas, músicas, áudios e assim por diante.”
Até hoje Question Hound aparece em tirinhas criadas por Green. Segundo ele, entretanto, talvez ele desapareça em breve. No enredo atual, o cachorro sumiu na floresta em estado de loucura. “Vai ter uma reviravolta estranha e sombria”, diz. “Acho que, depois disso, posso deixá-lo descansar um pouco”.