Duas horas antes do evento, muita gente já fazia fila na porta da Biblioteca Pública, na Praça da Liberdade, em BH. No auditório, todos os 191 lugares ocupados por pessoas de todas as idades. Ansiedade quase palpável e incomum para um evento de literatura. Na abertura do Sempre Um Papo em 2024, na noite desta quinta-feira (14), a expectativa para ouvir o escritor Jeferson Tenório ganhou ares de desagravo.
Isso porque, nas últimas semanas, o livro “ O avesso da Pele”, premiado com o jabuti em 2021, foi censurado e retirado da distribuição em escolas de ensino médio no Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul depois que uma diretora denunciou uma suposta inadequação da linguagem da obra para estudantes de 15 a 18 anos.
Em entrevista à Itatiaia, Jeferson Tenório destaca que os ataques partem de pessoas que não leram o livro, minuciosamente avaliado pelo PNLD antes de ser enviado às escolas.
“É uma contradição achar que adolescentes de 15 anos não podem ter acesso a uma linguagem que está dentro de um contexto de crítica. O pior disso é subestimar o professor, como se ele não tivesse condições de discutir sobre o material com adolescentes.”.
Jeferson Tenório, autor de "O Avesso da Pele", abriu a temporada 2024 do "Sempre um Papo" na noite desta quinta (14), em Belo Horizonte
— Itatiaia (@itatiaia) March 15, 2024
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Há dois anos, Tenório recebeu ameaças antes de uma palestra em Salvador por conta das cenas de violência policial. Agora, por conta de uma menção ao sexo. Para Tenório, as acusações desviam do cerne do livro - que é o racismo.
“É uma forma de desviar o assunto, desqualificar a discussão sobre a obra. O trecho “denunciado” pela diretora como pornográfico aborda como os corpos negros são caracterizados pela branquitude. Como ele é sexualizado. A pessoa pega aquele trecho e diz que o livro foi imposto pelo governo para utilizar com crianças” - quando, na verdade, o PNLD distribui a obra para alunos do ensino médio.
“Pornográfico é não se incomodar com a temática do livro. O livro trata da violência policial e do racismo. Isso deveria causar escândalo, e não palavras fora de contexto”, lembra Tenório.
“Se o intuito é que o livro não fosse conhecido, deu errado”, ironiza o autor, que se preocupa com a falta de estímulos para que os leitores busquem os livros.
Na última semana, a Amazon divulgou que as vendas de “O Avesso da Pele” cresceram 400% neste mês.
“Por que um discurso de extrema direita contra o livro é mais efetivo na busca pelo livro do que o professor na sala de aula? O que leva as pessoas a se interessarem por um livro? Tudo que tem sido dito fomentou a curiosidade. Mas o que não estamos fazendo para a formação de leitores? A leitura tem que ser naturalizada na vida das pessoas, elas devem conviver com os livros”, pontua Tenório.
Sobre os ataques à linguagem do livro, que trata de uma família negra afetada pela violência policial, Tenório lembra que o Brasil historicamente foi formado pela violência contra a população preta e indígena.
“Como um escritor não vai levar isso em consideração? Se estão reclamando, acostumem-se porque virão outros escritores negros. O Brasil precisa se reconhecer como um país preto”, provoca, citando “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves e “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, como grandes obras escritas recentemente que já alcançaram a estatura de um Machado de Assis para a cultura nacional.