Alfabetização de crianças com deficiência intelectual ainda enfrenta grandes desafios

Especialistas apontam que faltam estrutura e formação adequada para atender esses estudantes

O Dia Internacional da Pessoa com Deficiência é celebrado nesta quarta-feira (3). A data foi criada pela ONU em 1992 para reforçar a importância da inclusão e da garantia de direitos.

Mesmo com avanços, a alfabetização de crianças com deficiência intelectual ainda enfrenta obstáculos nas escolas brasileiras. Embora mais estudantes estejam presentes nas salas regulares, especialistas apontam que o processo de aprendizagem exige adaptações adequadas, acompanhamento de perto e profissionais qualificados, elementos que ainda não chegam com a mesma qualidade a todas as instituições.

Desafios no aprendizado

Na rotina escolar, dificuldades relacionadas ao ritmo de aprendizagem, à compreensão de instruções e à organização das atividades aparecem com frequência. Esses obstáculos impactam não só o desempenho, mas também o bem-estar emocional. Segundo especialistas, quanto mais exigente e rígido é o ambiente, maiores tendem a ser a frustração e a insegurança vividas pelas crianças.

A psicóloga Dayane Cupertino, especialista em crianças e adolescentes, observa desafios emocionais e cognitivos que atravessam o processo de alfabetização.

Para ela, conteúdos abstratos, instruções longas e ambientes com muito barulho se tornam barreiras constantes ao aprendizado.

Uma professora de apoio de uma escola pública de Belo Horizonte, que preferiu não ser identificada, confirma esses desafios. De acordo com ela, muitas dificuldades surgem já nas primeiras etapas da alfabetização.

A professora explica que essas crianças geralmente exigem acompanhamento contínuo e planejamento detalhado, o que nem sempre é possível devido ao cotidiano escolar acelerado.

“A compreensão simbólica, a concentração e a memória são afetadas. O aluno entende em um contexto, mas tem dificuldade de usar esse conhecimento em outro”, afirmou Cupertino à Itatiaia. Segundo ela, irritabilidade, mudanças de humor e limitações motoras podem interferir diretamente no processo.

Falta de formação profissional e estrutura

Além dos desafios dentro da sala de aula, especialistas apontam que a formação docente ainda está distante do ideal para garantir uma alfabetização inclusiva. Para a pedagoga Lorena de Morais Siqueira, especialista em Neuroeducação e Inclusão, a crise começa na formação inicial dos professores das redes pública e privada. Ela destaca que os cursos de Licenciatura tratam pouco — ou quase nada — das necessidades de estudantes neurodivergentes.

“Os cursos de Licenciatura não preparam os professores para trabalhar com alunos neurodivergentes. A prática exige estratégias diferenciadas e adaptação curricular, mas muitos profissionais não recebem esse preparo”, afirmou Lorena à Itatiaia.

Apesar do novo Decreto 12.686/2025 reforçar a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, Lorena vê uma irregularidade clara entre legislação e realidade.

Somado a isso, há a falta de estrutura nas escolas. Materiais acessíveis, recursos visuais, tecnologias assistivas e tempos diferenciados são essenciais para garantir equidade, mas não chegam de maneira uniforme. “A inclusão não acontece só no discurso. Sem recursos e equipe preparada, o processo não avança”, posicionou-se.

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A especialista também destaca o impacto do contexto familiar, muitas vezes marcado por dificuldades financeiras e falta de orientação. Ela explica que, quando a criança não recebe apoio adequado em casa, isso impacta na motivação e na autoestima. “Isso cria um ciclo doloroso: a criança se sente incapaz, desmotiva e se afasta da escola. Mas elas são totalmente capazes de aprender quando recebem estratégias adequadas”, reforçou.

Leonardo Gontijo, diretor-presidente do Instituto Mano Down, que há 10 anos promove a autonomia e inclusão de pessoas com síndrome de Down e outras deficiência, explica à reportagem que, historicamente, pessoas com deficiência intelectual foram excluídas tanto da vida escolar quanto das oportunidades de aprendizagem formal.

“Menos de 10% das pessoas com deficiência intelectual são alfabetizadas, segundo o nosso recorte desde 2015. A presença desses estudantes nas escolas regulares é muito recente’’, comentou. Para ele, esse processo só avança quando a escola acredita no potencial de aprendizagem do aluno. “A primeira barreira é acreditar que o estudante pode aprender. A escola precisa acolher, adaptar e persistir. Sem isso, não há avanço.”

O Instituto foi iniciada em 2010, por Leonardo Gontijo, com o objetivo de dar vez e voz para as pessoas com Síndrome de Down

O olhar das famílias

A experiência das famílias reforça o que especialistas descrevem. Ana Flavia Jacques, mãe de Maria Fernanda, de 13 anos, adolescente com síndrome de Down, afirmou à Itatiaia que a falta de preparo técnico é um dos pontos mais críticos no cotidiano escolar.

Para ela, o problema não é individual, mas estrutural. “Quando o educador não é capacitado, quem perde não é só o aluno com deficiência. Toda a turma perde, a escola perde, a sociedade perde. A inclusão só funciona quando existe conhecimento técnico e suporte real, e esse suporte chega de forma muito desigual.”

Ana Flavia também aponta a ausência de recursos como uma das maiores barreiras. “As escolas precisam de materiais adaptados, tecnologia assistiva, ambientes pensados sensorialmente. Na prática, isso quase não existe. Muitas vezes há boa vontade, mas não há verba, nem estrutura, nem equipe técnica. A inclusão fica no papel.”

Segundo ela, sem adaptações adequadas, as crianças ficam em desvantagem desde cedo. “Atividades táteis, visuais, auditivas, mediação constante — tudo isso é básico. Mas, quando não existe, a criança perde oportunidades que não voltam. A inclusão sem estrutura vira só um discurso bonito.”

A rotina familiar, destaca, também é profundamente impactada. “Os desafios são diários. A gente vira mãe, terapeuta, gestora, advogada. Se a família não luta, nada acontece. É cansativo emocional e financeiramente. A gente corre atrás de direitos básicos o tempo todo, desde matrícula até adaptações pedagógicas.”

O medo do futuro e a frustração com a falta de preparo do sistema fazem parte da vida dessas famílias, segundo ela. “A gente vê o potencial dos nossos filhos, mas sabe que sozinho não dá. Eles precisam de uma rede que funcione. A inclusão é coletiva e importante para toda a sociedade.”

Ana Flavia Jacques e sua filha Maria Fernanda de 13 anos, adolescente com síndrome de Down

Caminhos para fortalecer a inclusão

A Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte afirmou à Itatiaia que tem investido em ações para fortalecer a alfabetização de crianças com deficiência. Segundo a pasta, o Atendimento Educacional Especializado (AEE), a presença de professores especialistas e as formações contínuas sobre planejamento individualizado e Comunicação Alternativa e Aumentativa (CAA) fazem parte das estratégias em andamento. O fornecimento de tecnologias assistivas e oficinas para profissionais também integra as ações.

Apesar de iniciativas como essas, especialistas ressaltam que o aprendizado costuma exigir um tempo maior para se consolidar.

Muitas crianças precisam revisar conteúdos várias vezes e recorrem a atividades práticas para fixar habilidades importantes para a vida diária, como identificar valores de dinheiro, compreender sinais e placas, memorizar dados pessoais e desenvolver competências sociais.

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O consenso entre os profissionais é que a inclusão depende de uma base fundamental: escola, professores e família. Somente com a participação ativa desses três pilares o processo de alfabetização se torna consistente, motivador e capaz de fortalecer a autonomia das crianças. “Se um desses pilares falha, quem paga o preço é a criança”, resumiu Lorena.

Mesmo com avanços nos últimos anos, especialistas concordam que ainda há um longo caminho para assegurar que estudantes com deficiência intelectual tenham acesso a uma alfabetização que respeite seus ritmos, valorize suas potencialidades e os prepare para participar plenamente da sociedade.

O que diz a lei

O Capítulo IV – Do Direito à Educação – da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) estabelece que a educação é um direito da pessoa com deficiência.

A norma garante um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e o aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a possibilitar o máximo desenvolvimento de talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, respeitando as características, interesses e necessidades de cada estudante.

A lei também determina que é dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade às pessoas com deficiência, protegendo-as de qualquer forma de violência, negligência ou discriminação.

Entre as responsabilidades atribuídas ao poder público, estão:

  • I – assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, além de garantir o aprendizado ao longo de toda a vida;
  • II – aprimorar continuamente os sistemas educacionais, garantindo condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, com oferta de serviços e recursos de acessibilidade que eliminem barreiras e promovam a inclusão plena.

As determinações completas da lei podem ser acessadas aqui.

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Izabella Gomes é estudante de Jornalismo na PUC Minas e estagiária na Itatiaia. Atua como repórter no jornalismo digital, com foco nas editorias de Cidades, Brasil e Mundo.
Jornalista formada pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH) e graduanda em Letras pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). Foi editora do Jornal da Itatiaia e, atualmente, integra a equipe do portal da Itatiaia como chefe de reportagem.

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