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Jornalista brasileira revela como ajudou Julian Assange e o Wikileaks a divulgar documentos secretos dos EUA

No livro “O Vazamento”, Natalia Viana detalha período em que coordenou ações do Wikileaks; Assange, solto recentemente da prisão, é primeira pessoa condenada por lei de espionagem dos Estados Unidos

Fundador do Wikileaks, Assange foi libertado após acordo com o Departamento de Estado dos EUA; imagem mostra chegada de Assange a Canberra, na Austrália

Natalia Viana estava na Amazônia quando recebeu uma ligação misteriosa: deveria ir para Londres o mais rápido possível, onde teria acesso a um conjunto explosivo de documentos. Como o número era de um conhecido dos tempos em que fez mestrado na Inglaterra, não pensou que era uma bravata - raspou literalmente as economias e apareceu dois dias depois na capital inglesa.

Parece cena de filme. Em uma mansão centenária ao norte de Londres, varou dias e noites para coordenar a publicação de um dos maiores vazamentos de documentos secretos da história: ela havia sido recrutada por Julian Assange, criador do Wikileaks (confira a entrevista abaixo). A organização possibilitou a delatores fornecer provas de segredos de Estado, como imagens de um ataque de soldados americanos que matou civis no Iraque.

Natalia lança nesta semana “O Vazamento” (Editora Fósforo, 344 páginas), livro em que conta os bastidores inacreditáveis daqueles idos de 2010, quando as redes sociais nasciam e a internet ainda parecia um ambiente livre que levaria as pessoas a construírem uma sociedade melhor.

Natalia Viana em entrevista à Itatiaia

Assange em liberdade

Por coincidência, no dia 24 de junho deste ano, Assange foi libertado da prisão de segurança máxima na Inglaterra em que passou os últimos cinco anos e voltou à Austrália. Antes, ficou sete anos asilado na Embaixada do Equador em Londres e meses em prisão domiciliar no casarão em que Natalia Viana teve o primeiro contato com os telegramas e técnicas de criptografia para resguardar o material. Assange já havia feito acordo com jornais como o NY Times o The Guardian, e caberia a Natalia se acertar com parceiros no Brasil. O caso, inicialmente, foi publicado na Folha de S Paulo e no Globo.

A jornalista coordenou a divulgação de documentos relativos ao Brasil do chamado cablegate, ou 3 mil de um total de 250 mil mensagens da diplomacia americana que mostram, sobretudo, tentativas do governo dos EUA de interferir em assuntos sensíveis, como a legislação do pré-sal. Ao longo de uma década, o ativista vazou cerca de 700 mil documentos da diplomacia americana.

Viana detalha ações do Wikileaks em “O Vazamento”

Viana fundou a Agência Pública, site de notícias dedicado a investigar sobretudo violações contra direitos humanos, e é hoje uma das mais premiadas jornalistas do Brasil. O efeito do Wikileaks é conhecido: o grupo fundado em 2006 foi o combustível que provocou revoltas e ajudou a derrubar governos no Oriente Médio, na chamada “Primavera Árabe” e expôs segredos de governos. Mas levou Assange, um ativista de temperamento implacável, a ser perseguido pelo governo dos EUA e se tornar a primeira pessoa condenada pela Lei de Espionagem, criada em 1917. Quatorze anos depois do escândalo, quem revelou crimes de guerra foi obrigado a assinar uma confissão de culpa para se livrar de uma cela em que passava 23 horas do dia.

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Confira a entrevista com Natalia Viana, autora de ‘O Vazamento’

Quais foram os maiores impactos do Wikileaks? Eu penso na Primavera Árabe e na referência que o trabalho se tornou para o jornalismo investigativo independente.

O Wikileaks teve um impacto profundo porque é uma organização independente, e demonstrou que a digitalização da vida ia permitir mudanças no trânsito de informações. Pessoas que trabalham em empresas ou governos poderiam vazar grandes bases de dados que expusessem crimes. Foi um modo de fazer jornalismo com base em documentos conceitualizado pelo Assange, o Wikileaks foi pioneiro. Outra coisa que gosto de lembrar é da colaboração. Nesse vazamento que trato no livro, de 250 mil despachos diplomáticos, o Wikileaks colocou cinco grandes redações para trabalhar juntas: Le Monde, The Guardian, NY Times, El Pais e Der Spiegel, e depois fez parceria com 70 veículos. Você sai de um paradigma de competição para a colaboração.

O lançamento do livro coincide com a soltura do Assange. Ele ter admitido crimes pelos vazamentos cria um precedente perigoso para o jornalismo? Você trabalharia novamente com ele?

A Agência Pública continua parceira do Wikileaks. Ela foi fundada há treze anos, no bojo desse vazamento. Publicamos há um ano uma série de documentos que revelavam pagamentos de organizações antidireitos de mulheres e LGBTQIA+. Não discordo do Julian ter assinado uma confissão. Uma pessoa que há 14 anos tem sua liberdade limitada, tendo passado sete anos em uma embaixada e cinco anos em uma cela solitária, tem que fazer o que for preciso para se proteger. Ele estava em uma penitenciária de segurança máxima na Inglaterra, só tinha uma hora de luz de sol por dia e passava a maior parte do tempo em isolamento. Ele estava em um imbróglio jurídico do qual não conseguia sair. É o governo de Joe Biden que estabelece o precedente de uma primeira condenação na história dos EUA por alguém cometer jornalismo. Nunca a lei de espionagem de 1917 foi usada contra qualquer pessoa que vazou ou publicou documentos, jornalista ou publisher. É lamentável o desfecho, mas não acho que a culpa seja do Assange.

No livro, você descreve o perfil controlador do Assange. Ele é uma pessoa que exige dedicação absoluta e nem pagava pelo trabalho. Como é ter se envolvido, no começo da carreira, em um dos maiores furos do jornalismo?

Escrevi que o vazamento do Wikileaks foi meu ‘batismo de sangue’ no jornalismo. Não era conhecida e tinha 30 anos, foi um aprendizado muito rápido. E havia questões éticas complexas. Como era o começo desses vazamentos, eu me perguntava: será que podemos usar esses documentos ou só estamos sendo voyeur? Com o tempo, por conta da qualidade do jornalismo feito foi com esses documentos, hoje isso é uma questão superada. Em relação ao Assange, tem duas coisas. De fato, ele é uma pessoa muito difícil de trabalhar e acabou brigando com os principais parceiros, com os jornais mais conhecidos do mundo. Por outro lado, Assange confiou muito no meu trabalho e no meu julgamento. Ele me permitiu criar a estratégia de uma série de experimentos, todos relatados no livro. Isso me permitiu ver que o jornalismo digital estava nascendo, estava para ser inventado. Agradeço muito ao Julian, que foi um dos meus mestres. Mas é difícil trabalhar com ele.

Você chegou a fazer um enquete para saber o que as pessoas queriam que você pesquisasse nos documentos. E o que mais te pediram foram informações sobre extraterrestres.

Sim. Uma época em que as redes sociais estavam a toda, eu com 3 mil documentos brasileiros (do vazamento), lancei um chamado online para quem quisesse me dizer o que procurar. Vieram muitas sugestões: PSDB, Dilma, Lula, tráfico. Mas o pedido mais repetido foi: ‘tem alien?’ ‘Tem algum documento que comprova a existência de extraterrestres?’ Fiquei chocada porque as pessoas não entendem muito bem até onde a gente pode ir. Percebi que, por mais que tivesse informações secretas, não conseguiria suprir a expectativa das pessoas. Não descobrimos aliens. Se eu soubesse, juro que teria publicado. Saíram mais de 200 reportagens com base nesses documentos e o que conseguimos descrever é como se dá a influência, o softpower dos EUA no Brasil. Com que políticos se relacionavam e como tentavam vencer o que chamavam de ‘antiamericanismo’ nos dois primeiros governos Lula.

O Wikileaks também ajudou Edward Snowden (que vazou documentos da NSA, agência de espionagem dos EUA) a fugir de Hong Kong e a se abrigar na Rússia.

Inspirado pelo Wikileaks, Snowden resolveu vazar para Glenn Greenwald e Laura Poitras uma quantidade enorme de documentos da NSA, agencia de espionagem americana. Mostrando que a NSA estava espionando muitas pessoas, empresas, líderes mundiais no mundo inteiro, mas também nos EUA, algo que é ilegal. E depois houve leis para impedir esse tipo de espionagem dentro dos EUA. O Snowden fez esse vazamento e reconheceu que era ele o vazador pouco tempo depois e ele estava sozinho em Hong Kong. O assange ficou preocupado com a segurança dele e enviou sua assessora, a Sarah Harrisson, que era a número 2 do Wikileaks, uma mulher brilhante, com a qual trabalhei no Wiki, e ela foi até Hong Kong, convenceu o Snowden a ir para a Rússia, que foi onde pararam. Até chegarem na russia o passaporte foi revogado. Ficaram no aeroporto de Moscou dias sem saber o que ia acontencer e a Rússia concedeu asilo, ele está na Rússia até hoje. De fato, se não fosse a atuação do Wiki e da Sarah - mais uma mulher deixada em segundo plano - se não fosse por ela o Snowden estaria preso ou não estivesse vivo.

Os americanos não podem acessar os documentos do Wikileaks? No livro você cita um episódio em que foi ‘desconvidada’ a participar de um evento quando mencionou os documentos.

É uma diretiva patética do governo americano. Nenhum servidor público ou universidade pode acessar os documentos do Wikileaks. Oficialmente, se alguém acessou deve destruir (o material), porque consideram que os documentos ainda são considerados classificados. Apesar dos documentos estarem publicados! Você mata a discussão e a produção acadêmica, porque é um material histórico de extrema riqueza que narra como se deram as relações diplomáticas da maior potência mundial, em 150 países, durante mais de uma década.

Você cita a dificuldade de conseguir parcerias no Brasil e o fato de ser mulher jovem enfrenta desconfiança com o trabalho e machismo.

Minhas editoras falaram: você está relatando o machismo estrutural. No começo, meu nome não foi citado na parceria com a Folha e tive que publicar em um site independente para ser reconhecida. Durante muito tempo, ouvi que não era isenta ou objetiva porque estava trabalhando com o Wikileaks. Esse trabalho de coordenação foi estratégico, e trabalhei de graça, não recebi nada. Demorou 10 anos para eu entender o que acontecia, na época o machismo era mais comum. Ainda hoje dá o tom: há mais mulheres no jornalismo, mas uma minoria em cargos de chefia. Tenho trajetória premiada e fui uma das cinco jornalistas a receber bolsa de Harvard. Se fosse um jornalista homem, as coisas em que acredito enquanto jornalista estariam sendo mais discutidas. Avançou-se muito, naquela época era um cenário diferente.


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Enzo Menezes é chefe de reportagem do portal da Itatiaia desde 2022. Mestrando em Comunicação Social na UFMG, fez pós-graduação na Escola do Legislativo da ALMG e jornalismo na Fumec. Foi produtor e coordenador de produção da Record e repórter do R7 e de O Tempo